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Plinio Corrêa de Oliveira
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Aprendizado universitário no ensino medieval – Parte 3


A bula Parens scientiarum, de Gregório IX
A bula Parens scientiarum, de Gregório IX

No ensino medieval, os estudantes mais dotados tomam naturalmente o caminho da universidade.

Fazem a sua escolha segundo o ramo que os atrai, pois cada uma tem algo do que se pode considerar uma especialidade.

Em Montpellier, é a medicina. Desde 1181 Guilherme VII, senhor desta cidade, deu a qualquer particular — quem quer que seja, e venha de onde vier — a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresente suficientes garantias de saber.

Orleans tem como especialidade o direito canônico, e Bolonha o direito romano.

São Gregorio IX, Rafael, Stanza della SegnaturaMas “nada se pode comparar a Paris”, onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os estudantes de todos os países – Alemanha, Itália, Inglaterra, e mesmo da Dinamarca ou Noruega.

Estas universidades são criações eclesiásticas, de algum modo o prolongamento das escolas episcopais, das quais diferem no fato de dependerem diretamente do Papa, e não do bispo do lugar.

A bula Parens scientiarum, de Gregório IX, pode ser considerada a carta de fundação da universidade medieval, com os regulamentos promulgados em 1215 pelo cardeal-núncio Roberto de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconheciam explicitamente aos professores e aos alunos o direito de associação.

Criada pelo papado, a universidade tem um caráter inteiramente eclesiástico.

Os professores pertencem todos à Igreja, e as duas grandes ordens que a ilustram no século XIII – franciscana e dominicana – nela vão cobrir-se de glória com um São Boaventura e um São Tomás de Aquino.

Os alunos, mesmo os que não se destinam ao sacerdócio, são chamados clérigos, e alguns deles usam a tonsura, o que não quer dizer que aí apenas se ensine a teologia, uma vez que o seu programa comporta todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, da gramática à dialética, passando pela música e pela geometria.

Essa “universidade” de professores e estudantes forma um corpo livre. Desde o ano 1200, Filipe Augusto tinha subtraído os seus membros da jurisdição civil — dito de outra maneira, dos seus próprios tribunais.

Professores, alunos e mesmo os criados destes dependem apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado um privilégio e consagra a autonomia dessa corporação de elite.

Professores e estudantes estão, portanto, inteiramente isentos de obrigações relativamente ao poder central.

Administram-se a si próprios, tomando em comum as decisões que lhes respeitam, e gerem sua tesouraria sem nenhuma ingerência do Estado.

É esta a característica essencial da universidade medieval, e provavelmente aquela que mais a distingue da de hoje.

Esta liberdade favorece entre as diversas cidades uma emulação.Durante anos, os professores de Direito Canônico de Orleans e de Paris disputam entre si os alunos.

Universidade de Oxford, Inglaterra
Universidade de Oxford, Inglaterra.

Os registros da Faculdade de Direito formigam de recriminações aos estudantes parisienses, que vão fraudulentamente concluir a sua licenciatura em Orleans, onde os exames são mais fáceis. Ameaças, anulações, processos, nada surte efeito, e as contestações prolongam-se interminavelmente.

Emulação também a respeito dos professores mais estimados ou menos, das discussões apaixonadas das teses, que os estudantes tomam a peito até ao ponto de algumas vezes entrar em greve.

A universidade, mais ainda do que nos nossos dias, é na Idade Média um mundo turbulento.

É também um mundo cosmopolita. As quatro “nações” entre as quais estavam repartidos os clérigos parisienses indicam-no suficientemente: havia os picardos, os ingleses, os alemães e os franceses.

Os estudantes vindos de cada um destes países eram, portanto, suficientemente numerosos para formar um grupo que tinha a sua autonomia, os seus representantes, a sua atividade particular.

Fora disto, assinalam-se correntemente nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros.

Os professores que ensinam vêm também de todas as partes do mundo.

Siger de Brabant e Jean de Salisbury, seus nomes já os identificam; Alberto Magno vem da Renânia; São Tomás de Aquino e São  Boaventura, da Itália.

Não há então obstáculo às trocas de pensamento, e só se julga um professor pela amplidão do seu saber.

Esse mundo matizado possui uma língua comum, o latim, única falada na universidade.

É sem dúvida o que lhe evita ser uma nova Torre de Babel, apesar dos grupos diversificados de que é composta.

O uso do latim facilita as relações, permite aos sábios comunicar-se de uma ponta à outra da Europa, dissipa de antemão qualquer confusão na expressão, e salvaguarda também a unidade de pensamento.

Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos em Paris, Edimburgo, Oxford, Colônia, Pavia, ainda que cada centro e cada personalidade lhes imprima o seu caráter próprio.

Tomás de Aquino, vindo da Itália, acaba de esclarecer e ultimar em Paris uma doutrina cujas bases concebera em Colônia, escutando as lições de Alberto Magno.

Nada se parece menos com um vaso fechado do que a Sorbonne do século XIII. Gilles de Muisit resume deste modo a vida dos estudantes:

“Clérigos vêm aos estudos de todas as nações e no inverno se reúnem em vários grupos. Fazem-se leituras e escutam, instruindo-se; no verão regressam muitos às suas regiões”.

O seu vaivém é perpétuo. Partem para alcançar a universidade da sua escolha, voltam para as suas terras nas férias, põem-se a caminho para aproveitar as lições de um professor de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada cidade se especializou.

Já mencionamos as “fugas” dos candidatos aos exames de direito canônico para Orleans, e isto se repete constantemente, por vezes entre cidades muito distantes.

Estudantes e professores são frequentadores das estradas reais. A cavalo e mais frequentemente a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em celeiros ou na hospedaria.

Com os peregrinos e os mercadores, são eles que mais contribuem para a extraordinária animação que na Idade Média reinou nas nossas estradas, e que elas apenas reencontraram no século do automóvel, ou melhor, depois do desenvolvimento dos desportos de ar livre.

O mundo letrado da época é um mundo itinerante. A tal ponto que em alguns o movimento se torna uma necessidade, uma mania.

Nos nossos dias encontramos no Quartier Latin estudantes desses envelhecidos na boemia, que não conseguiram voltar a uma vida normal nem utilizar os estudos cujo peso suportaram durante anos.

Na Idade Média, esse tipo de indivíduos vagueava pela estrada. Era o clérigo vagabundo ou goliardo, tipo bem medieval, inseparável do “clima” da época. “Todo das tabernas e das raparigas”, vai de taberna em taberna em busca de uma “refeição gratuita obtida por manha”, e sobretudo de um copo de vinho; é assíduo dos maus lugares, guarda alguns restos de saber, dos quais se serve para o assombro das boas pessoas, a quem recita versos de Horácio ou fragmentos de canções de gesta; inicia ao acaso dos encontros uma discussão sobre qualquer questão teológica; e acaba por se perder na multidão dos jograis, dos tratantes e dos maltrapilhos, quando não o faz para evitar uma prisão devido a alguma má ação. As suas canções correram a Europa, e o mundo estudantil conhece ainda desses cantos goliardos:

“É meu propósito morrer numa taberna. Que o vinho dê ânimo aos moribundos, e digam coros de anjos com veneração: Que Deus seja benevolente com os bebedores!”

Várias vezes a Igreja teve de proceder severamente em relação a esses clérigos vagabundos (clerici vagi), que mantinham a devassidão e a preguiça no mundo dos estudantes.

Eles são a exceção.

(Autor: Régine Pernoud, “Lumière du Moyen Âge” – Bernard Grasset Éditeur, Paris, 1944)

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