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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Horror escancarado


Recebi de amigo o jornal parisiense “Le Monde”, de 29 de junho de 2017. Ele o comprou na capital francesa, quando embarcava para cá, e trouxe como lembrança. No mesmo dia, por acaso, chegou-me às mãos o sermão feito pelo cardeal Eugênio Pacelli (o futuro Pio XII) na catedral de Notre-Dame de Paris, em 13 de julho de 1937 [foto abaixo]. Antes, ele havia consagrado em Lisieux uma igreja dedicada a Santa Teresinha do Menino Jesus. Oitenta anos separam o sermão e a edição do jornal. Na aparência, um nada tem a ver com a matéria do outro. Na realidade, tudo a ver.

Ao ler “Le Monde”, pensei nas palavras francesas gouffre béant — abismo escancarado, um dicionário precisa — prêt à vous engloutir, pronto para vos engolir.

Vou tratar antes do sermão, que fica como quadro de fundo. O cardeal Pacelli afirmou que em Notre-Dame lhe falava a alma da filha primogênita da Igreja. Ali ele como que escutava a voz de Clóvis, de Santa Clotilde, de Carlos Magno, de São Luís IX, sobretudo, “nesta ilha em que [ele] parece ainda viver e que ornou, na Sainte-Chapelle, com a mais gloriosa e santa das coroas”. Essa capela, como sabemos, guarda fragmentos da coroa de espinhos que martirizou Jesus Cristo.

O enviado de Pio XI exortou os franceses à oração, à vigilância e ao amor ao próximo. E para quê? Para que a França pudesse cumprir sua vocação providencial. “À França de hoje que a interroga, a França de outrora responde dando a esta herança o nome verdadeiro: vocação”. A França só cumprirá sua vocação natural — alertou o cardeal — se for fiel ao chamado sobrenatural: “Os povos, como as pessoas, têm também sua vocação providencial; como os indivíduos, são prósperos ou miseráveis, brilham ou permanecem obscuramente estéreis, conforme sejam dóceis ou rebeldes a sua vocação. A passagem da França no mundo pelos séculos constitui ilustração dessa grande lei histórica. A energia indomável para cumprir sua missão fez nascer em vossa pátria épocas memoráveis”.

Em certo momento, proclama o cardeal Eugênio Pacelli: “Sejam fieis a vossa vocação tradicional. Não deixeis passar a hora, não deixeis estiolar os dons que Deus adaptou à missão que vos confiou”.

Passo a comentar “Le Monde”. O editorial do influente órgão de imprensa é uma defesa encarniçada do direito dos casais de lésbicas terem filhos via PMA (procriação medicamente assistida), reivindicação “legítima e lógica”. Apoia as recomendações do Comitê Consultivo Nacional de Ética (CCNE), cujas conclusões, aliás, de forma geral, certamente terão apoio de Emmanuel Macron, se o Presidente mantiver suas posições expressas na campanha eleitoral. A única restrição levantada pelo CCNE é de que o material masculino precisa continuar gratuito. O suposto direito das lésbicas é propagandeado nas páginas, 1, 12, 22, 23 e 24 do diário francês. Matizo, o contraponto (sobre ele vou falar) aparece em longo artigo estampado na página 23, autoria de Dom Pierre d’Ornellas, Arcebispo de Rennes, por certo escolhido para a tarefa por ter presidido a Comissão de Bioética da Conferência Episcopal Francesa.

A seguir, alguns dos assuntos tratados nas páginas de “Le Monde”. Opinião mais aceita: o doador deve ser anônimo. A criança nunca terá a possibilidade de conhecer o pai. Foi ponto delicado, esteve entre as razões pelas quais 11 dos 40 membros do CCNE votaram contra a recomendação aprovada. Os direitos paternais [vou utilizar a palavra, é a usual, mas aqui fica mal à vontade] pertencem às duas lésbicas, embora só uma delas leve adiante a gestação. E se houver separação litigiosa durante a gravidez? Permanece o direito da mulher que não gerou, assim como o direito dos avós (os pais dela). E se as duas forem estéreis? Contratariam uma terceira. Em outros países hoje já há comércio, locais permitidos, condições estipuladas para a chamada “barriga de aluguel”. Ainda não se tem notícia do comércio de espermatozoides. Pode acontecer logo. Fatores de valorização na certa, a juventude, inteligência, saúde, fama. Outro tema: em que medida deverá ser empregado dinheiro público para evitar disparidades entre os casais ricos e os pobres? Ainda, grande concordância sobre o direito de as mulheres congelarem óvulos para provocar a gestação se e quando o desejarem, com doadores escolhidos. Por exemplo, congela aos vinte, tem o filho aos cinquenta, depois da carreira feita.

O contraponto agora, o artigo da página 23 do arcebispo de Rennes, Dom Pierre d’Ornellas. Em nenhum momento no longo texto aparecem as palavras Deus, Evangelho, Igreja Católica, Magistério, Sagradas Escrituras, Bíblia, Nosso Senhor Jesus Cristo, natureza, moral, moral natural, moral cristã, moral católica. Seria congruente que fossem citados documentos como Donum Vitae e Familiaris Consortio. Nada.

A primeira preocupação de Dom d’Ornellas é o calor das discussões. “Não despertemos as divisões entre os franceses” — intitulou o artigo. “É urgente buscar o apaziguamento da França e suscitar uma nova confiança mútua”.

A segunda vem de crítica feita quase com eufemismos: “O CCNE não aborda a procriação nem a sexualidade em si mesmas, para daí retirar as significações verdadeiras e ponderar toda a envergadura ética”. Insta preocupado: “Temos necessidade de um olhar antropológico que, por causa do debate, seria crescentemente aprofundado e compartilhado para ajudar a todos a compreender melhor a grandeza de nossa condição humana e da transmissão da vida”.

Desagua na conclusão: “Essas técnicas reclamam de nós um sobressalto ético. O respeito ao mais frágil é a pedra fundamental. A autonomia, longe de ser um direito absoluto, é relacional. O desafio ecológico que nos coloca a irmã Terra provoca a pergunta: Que planeta queremos deixar para os nossos filhos? Por que o uso das técnicas biomédicas não seria guiado pela mesma questão”?

Acho desnecessário comentar com detalhes a posição do arcebispo, mas está claro, não era o alimento que as almas retas esperavam. Nem quanto ao conteúdo nem quanto ao tom. Alguém julgará decisivas argumentações como a acima, acenadas contra investidas poderosas de milícias diabólicas? Não fujo do adjetivo, considerem a sociedade que pretendem nos impor; tais medidas são apenas a porta de entrada, imaginem o que virá como medidas correlatas, congruentes e de decorrência lógica. Veio-me ao espírito o seguinte: “E, se algum de vós pedir um pão a seu pai, porventura dar-lhe-á ele uma pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, porventura dar-lhe-á ele, em vez de peixe, uma serpente? Ou se lhe pedir um ovo, porventura dar-lhe-á um escorpião?” (Lc, 11, 11-12).

Qual o rumo? O futuro Pio XII, pregando em 1937 no púlpito mais importante da França, propôs passos necessários para a realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Bons programas, grandes organizações, tudo isso é muito bom; mas, antes, o trabalho essencial é o realizado no fundo de cada um, no espírito, no coração e na conduta. Só ele pode fazer Cristo reinar nos corações, só ele é capaz de trazer a realeza de Cristo”. Tais palavras — começo de estrada — são contraponto autêntico às investidas que assaltam a França. De fato, agredirão todos nós, mais dias, menos dias.

 

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Péricles Capanema

Péricles Capanema

184 artigos

Analista político e colaborador do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira

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