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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Por favor, não me achem


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Quando surgiu a novidade, eu declarei: Pretendo ser o último homem do mundo a usar o telefone celular. Não me importa que me chamem de retrógrado, quadrado, anti-social. Muitos outros qualificativos do gênero já ilustraram minha biografia, o que até me estimula a manter inalterável a decisão.

Deixando o aparelhinho de ser uma novidade, a vaidade e ostentação deixaram também de justificar a febre competitiva inicial. Tenho constatado que a qualidade da comunicação melhorou muito, corrigindo alguns dos problemas iniciais. O curioso é que agora muitos deixam cada vez mais o aparelho desligado, e a caixa postal se transforma numa tranquila secretária eletrônica. Outros inconvenientes se manifestaram: tarifas elevadas, defasagem (delay) entre a recepção e a resposta, perda de tempo com telefonemas desnecessários. Surpreendem-me comentários assim:

— Os celulares estão tornando minha vida impossível. Vou sair dessa.

Os “viciados” alegam:

— Só não paro de usar porque já me acostumei.

Outros se justificam com os limites autoimpostos:

— Só uso para fins profissionais.

Os meus motivos e a minha decisão se mantêm inalterados, mas o que nem sempre consigo é livrar-me das consequências de outros usarem o celular. Você já deve ter sido vítima delas, mas não custa citar alguns exemplos.

Num restaurante, estamos quatro amigos conversando e colocando em dia assuntos profissionais. De repente, uma musiquinha desafinada sai do bolso de um deles. Sem qualquer consideração para conosco, ele atende:

— Alô!

— …

— Ah! É você, Pancrácio? Chegou inteiro em casa? [haviam se encontrado duas horas antes].

— … … … … …

A conversa entre os demais fica impossível, os três assumimos caras de paisagem, e o importante monólogo com o intruso prossegue. Três minutos depois:

— Hoje à noite eu passo aí.

— … …

— Tchau!

E a despedida é esse abominável “tchau”, que não é português, italiano, língua nenhuma decente, e que soa aos meus ouvidos como “vá plantar batatas!”.

— Sobre que estávamos conversando?

— Ah! Era uma coisa sem importância.

Não sei até quando minhas disposições conciliatórias suportarão o rancor acumulado, sem transpor o tênue limite entre contrariado e agressivo, para responder:

— Pergunte ao seu amigo Pascácio.

Outro exemplo. Numa loja:

— … Tem também este outro modelo com mais recursos, um pouco mais caro.

Um desafinado Pour Élise interrompe. E o pobre vendedor, cujo tempo é pago pelo dono da loja, e que recebe uma comissão sobre a venda, tem de ficar esperando.

Numa igreja, em pleno sermão, lá vem a musiquinha desafinada, desta vez a Kalinka. O irado sacerdote interrompe o sermão, a atenção dos fiéis se desfaz irremediavelmente. Por quê? O celular não tinha sido desligado, e só tardiamente o distraído resolve parecer educado.

Por que tenho de interromper a conversa com um amigo presente, para ele atender um ausente não convidado, interlocutor dele e não meu? Por que teria de assumir a condição de audiência involuntária, enquanto ando pela rua? Deve um motorista desviar a atenção do trânsito, para tratar de banalidades com um importuno? Há quem leve o celular para o banheiro, e provavelmente terá o desrespeito de atender naqueles trajes (ou sem eles), fingindo uma normalidade inexistente.

O mesmo nas filas, cinemas, teatros, transportes coletivos. Alguns desses já avisam que o celular deve ser desligado. Cada situação como essas me basta para manter a decisão de nunca usar o celular. Além disso, constantemente me chegam ao conhecimento outros motivos importantes para reforçá-la.

Será que tenho de ficar sempre à disposição de qualquer desocupado, esteja eu onde estiver? Assuntos urgentes? Toda urgência é bastante relativa, basta dizer que durante séculos a administração do Brasil ficava em Portugal, e as mensagens levavam dois meses para atravessar o oceano. Portanto havia uma demora de pelo menos quatro meses entre consultas e respostas. Nem por isso o Brasil foi mal administrado. Pelo outro lado, na nossa época de comunicações instantâneas os erros administrativos podem também ser instantâneos, e disso há exemplos abundantes. Quanto às consequências negativas, podem demorar a aparecer. O sucessor que se dane.

Se eventuais interlocutores têm urgência, contem carneirinhos até eu voltar para casa. Fora de casa, não estarei disponível: Por favor, não me achem.

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Jacinto Flecha

Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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