Mozart deixou uma obra musical vastíssima. Morrendo aos 35 anos, a composição dessa obra exigiu-lhe uma vida de intenso trabalho. “Nos momentos de grande cansaço e necessitando de repouso, eu componho”, costumava ele dizer.
Ele encontrava lazer na sua paixão. E ela o repousava. “Quando muito cansado”, dois velhos amigos franceses — um deles advogado e o outro professor — costumam dizer-me: “Vou a um restaurante”. À mesa eles se entregam ao mais alto dos prazeres sociais, a conversação, possantemente estimulada por sabores aprimorados. De que falam?
Na França realizam-se a todo momento congressos, conferências, encontros, exposições culinárias. Livros e artigos sobre este tema vêm a lume continuamente. A mesa está no centro da cultura do país.
Um dos grandes estudiosos da formação histórica e geográfica da culinária francesa é Jean-Robert Pitte, professor da Sorbonne e membro do prestigioso Institut de France. Seus livros, agradavelmente eruditos, entretanto não ressaltam suficientemente o papel da Igreja Católica na formação cultural da França.
Um bom artigo do “Figaro Magazine” (dezembro 2016), de autoria de Pitte, inspira tais considerações. A arte culinária francesa nasceu nos mosteiros e nas abadias, bem antes da Idade Média. A fé era então levada a todos os povos. As ordens religiosas viviam em missão. Muito numerosas, elas se estendiam por todo o continente europeu e fora dele. As contínuas missões, gerando o espírito de conquista das almas, geraram também o espírito de conquista de bens para as almas. Esse mesmo espírito levou monges e eremitas a desvendar segredos da natureza, pois bem sabiam que Deus tudo criou para os homens. Assim, o conhecimento dos bens naturais se dilatou. Não há arte ou ciência que não tenha recebido dos monges vigoroso impulso inicial.
E também a culinária. As receitas se multiplicaram. Na célebre abadia beneditina de Cluny, na Borgonha — a grande abadia civilizadora do Ocidente —, a fim de favorecer a descoberta de novas receitas, não se podia repetir o cardápio de uma refeição durante o mesmo ano. A cada dia, novos pratos. Em outras palavras, os cozinheiros tinham que criar. Honrosa era a função de cozinheiro. Suas receitas se tornaram célebres, sendo utilizadas até hoje. Aos poucos, elas se expandiram pelo povo.
Um exemplo. Até então as cozinhas não sabiam para quê servia a alcachofra, essa estranha planta, espécie de flor dura e sem cor. Servirão suas pétalas lenhosas e quase sem substância para algum prato? Servirá talvez para um condimento? Cozida, não tem sabor, mas tem, sobretudo, fibras. Fazer um purê? Com o quê? Seria trabalhoso! Levou-se tempo para encontrar uma aplicação para aquela planta. Somente bem mais tarde ela passou a ser cozida e servida com manteiga enegrecida ao fogo. E hoje é uma boa entrada de uma refeição. Requer elegância para comê-la, desfolhando-a com os dedos até chegar ao seu núcleo central, onde ela oferece o auge de seu sabor.
Deu trabalho a descoberta de uma função degustativa para a alcachofra. Nem todos os alimentos criados têm a generosidade da nossa mandioca, de utilidade imediata. Cozida ou frita, ela nos regala. Dela se obtém uma farinha de emprego universal em bolos e biscoitos. Um pãozinho de mandioca recheado ao Catupiry… Seu cultivo é fácil e as ramas são grossas. Certas regiões do Brasil são preguiçosas, dizia Monteiro Lobato, por causa da mandioca: abundante, boa e barata. Quase não exige esforço de cultivo.
Na Europa, a culinária desenvolveu-se com as navegações, que traziam novos ingredientes aos pratos. Não só as legendárias especiarias provenientes das Índias — como aprendemos na escola —, mas também matéria-prima como o milho, a batata e o tomate, vindos de outras regiões longínquas. O modelo continuava sendo a Igreja de Roma. Somente no século de Luiz XIV a nobreza tomou a dianteira no aprimoramento da mesa. Foi quando se difundiram mais intensamente os livros de receita. Criar um prato era resultado da aplicação do saber de dedicados cozinheiros. A função era séria. Ela compreendia o conhecimento da origem dos ingredientes, a combinação de sabores e modificações sucessivas. A elaboração foi desde então contínua. Aprimorou-se a capacidade de degustação. O paladar afinou-se.
Seria a procura do aprimoramento dos sabores algo censurável, próprio a glutões? É certo que não. O aprimoramento traz em si o espírito cristão. A gula é um vício e todo vício derriba o espírito. Subjugado pelo vício, o espírito não mais procura a palatável subtileza e muito menos o requinte. Ora, a culinária na França não cessa de se aprimorar. A propósito, lembro-me de um amigo de infância que não comia manteiga. Como não gostar dessa delícia? Entretanto, certo dia ele comera tanto que, nauseado, nunca mais pôde sentir sequer odor de manteiga. Outro fez o mesmo com o mel. Consumindo-o com intemperança, lambuzou-se de tal modo, que nunca mais pôde degustá-lo. A gula satura e nos leva a voltar as costas aos sabores abusados, até mesmo aos gostos apurados. O requinte à mesa é uma procura de perfeição. E, enquanto tal, reflete o espírito católico.
Meus dois amigos franceses à mesa comentavam o pão, o vinho, e todos os pratos. O trigo naquele ano não estava no apogeu. Abundantes chuvas umedeceram-no demasiadamente, causando uma torção de sabor. Também o vinho… escolhemos uma garrafa de um ano em que o frio veio cedo e os açúcares não se desenvolveram bem. Eu observava que a degustação das delícias era vivificada pelo pensamento. As porções servidas eram reduzidas. O estilo nacional não é tipo farta-brutos. A razão exerce um papel primordial no paladar francês, bem como nos comentários dos comensais. O valor das opiniões dos convivas é meticulosamente transmitido à cozinha. Assim se mantêm fregueses. E se aprimoram os pratos. Terminamos o jantar. Os dois estavam acesos, pareciam mais inteligentes, as ideias jorravam, a vivacidade rutilava. Meu advogado descobrira até mesmo que enfoque a dar a um processo complicado. Meu professor o contestava, um tanto provocador, tirando argumentos do histórico processo de Alfred Dreyfus. Aceso debate.
O descanso de Mozart não me saía da cabeça. Eu via que a mesa comunica aos franceses o fulgor que eles lhe vêm dando através dos séculos.
O filme, “A festa de Babette”, mencionado no final do artigo anterior, mostra uma comunidade protestante na qual os esforços do pastor para conseguir a paz entre seus seguidores eram baldados. Querelas se sucediam a mesquinhas contendas. A caridade só despontou entre eles quando seus humores ásperos foram serenados pelo banquete tipicamente francês preparado por Babette. Seu cuidadoso apuro não era senão dedicação ao próximo. Terminada a refeição, tocados por essa deliciosa expressão de caridade, uns pediam aos outros perdão pelas ofensas, fraudes e traições passadas. Era como uma remissão do passado — uma espécie de confissão. Nunca antes tinham assim aberto seus corações.
(*) Fonte: Revista Catolicismo, Nº 794, fevereiro/2017.
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