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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Tempo passado, tempo passando


Como consequência tardia e indireta da obra demolidora de Bin Laden, meu retorno de Nova York para São Paulo, em 2001, teve uma escala noturna em Miami. Fiquei conhecendo a pista e as luzes do aeroporto, e se alguém me perguntar se conheço Miami, afirmarei com honestidade biográfica que já passei por lá. Mentiria, é claro, se afirmasse conhecer a importante cidade da Flórida, provável detentora da maior densidade demográfica de brasileiros fora do País.

Nesse desvio de rota, viajei algumas centenas de quilômetros a mais, chegando ao destino com cerca de duas horas de atraso. Eu havia assumido pouco antes a condição de aposentado, sem grande preocupação com o tempo, e só agora, ao redigir esta crônica, dou-me conta do tempo perdido com esse contratempo infligido por Bin Laden. Deus pede estrita conta do meu tempo, como afirmam o catecismo e o soneto, por isso pretendo contabilizar duas horas a menos no meu tempo, transferindo-as para a conta do terrorista; cujo acerto de conta com Deus, aliás, já está em pleno curso.

Naquele país onde tempo é dinheiro (time is money), todos correm para ganhar tempo, tentando assim multiplicar o dinheiro, e talvez haja alguma lei para me ressarcir por essa perda de duas horas, mas receio que a tabela de conversão de horas em dólares não seja compensadora; e exigirá mais tempo.

Longe de mim, caro leitor, a intenção de fazê-lo perder tempo. Estou apenas aquecendo os motores, e já vou entrar no assunto. No conjunto de referências e marcos abalroados neste texto inicial, você já percebe por onde caminharão as considerações de hoje. Pode até impacientar-se por me ver mencionar aquecimento de motor, quando a tecnologia eliminou mais essa perda de tempo. Mas este cronista aprendeu, com um dos melhores pedagogos da história recente, que longas introduções tornam curtas e claras as conclusões. E aí temos meio caminho andado para apresentá-las.

Quem viaja de carro centenas de quilômetros em poucas horas, nem de longe pode afirmar que conhece as paisagens e cidades do caminho. Para de fato conhecer uma cidade, é necessário muito mais que uma passagem rápida por ela, mesmo havendo incômodas reduções de velocidade impostas pelas lombadas. Da mesma forma, não se aprende uma ciência – qualquer ciência – pela simples leitura apressada de um manual. Um escritor radicalmente contrário a grandes velocidades afirmou: O cavalo já foi um erro. Entenda-se como erro, neste caso, a velocidade acima da humana, que exclui a morosidade necessária para observação, exame atento e estudo profundo do que nos cerca.

Imagine quanto tempo deve despender um arqueólogo empenhado em conhecer a pré-história de uma cidade ou região, examinando cada pedra de uma parede, cada objeto completo ou fragmento de utensílio. E só poderá fazê-lo depois de muito tempo dedicado a adquirir os conhecimentos necessários. O livro Deuses, túmulos e sábios relata o trabalho impressionante de cientistas como Champollion, que aos doze anos decidiu decifrar os hieroglifos entalhados na pedra de Roseta. Sua preparação incluiu o conhecimento erudito de doze línguas, das quais a metade eram línguas mortas. Só aos trinta e cinco anos foi examinar na preciosa lápide as três inscrições (em grego e egípcio demótico, além dos hieroglifos). Após exame atento, longo e persistente, descobriu e revelou ao mundo o segredo da escrita hieroglífica.

Quando os franceses querem falar de superficialidade, usam a expressão à vol d’oiseau (como voo de pássaro). Muitos turistas, provavelmente pressionados por finanças magras, correm de um lugar para outro, de um monumento ou museu de arte para outro – à vol d’oiseau – para ver o máximo possível em pouco tempo. Mas o recomendável é deter a atenção admirando o que nos atrai. Era o que ensinava o mesmo pedagogo: Se lhe restam apenas duas horas para apreciar Veneza, sente-se num banco da Praça de São Marcos e admire a catedral.

Quem lê Os miseráveis, longo romance de Victor Hugo (mais de 60 horas de leitura), pode entender certos assuntos da alma humana, da sociedade, da História, muito mais do que assistindo a um dos muitos filmes baseados na obra. Estes se limitam a encadear algumas cenas sentimentais em duas horas de projeção, mas não transmitem com profundidade os assuntos abordados no livro. Por exemplo, a batalha de Waterloo, cujo vínculo com o enredo é mínimo. Hugo descreveu-a em dezenas de páginas, mas os filmes nem sequer a mencionam, na melhor das hipóteses mostram a placa identificadora da estalagem Ao Sargento de Waterloo. Guardadas as proporções, esses filmes equivalem a sintetizar o enredo numa frase assim: História de um ex-presidiário que enriqueceu, foi cruelmente perseguido por um policial, e conseguiu cumprir a promessa feita a uma mãe solteira pobre e agonizante, utilizando sua fortuna para educar a filha dela. É só esse enredo cerebrino que se aprende, ao ler o livro?

Há grande distância entre ver e conhecer, entre conhecer e saber, entre estudar e aprender. Para adquirir conhecimento profundo e durável é preciso dedicação, tempo, muito tempo. O onisciente Google nos fornece informações e esclarece nossas dúvidas instantaneamente, e isso é ótimo. Mas nos deixa muito mal acostumados.

Estou agora pensando em conhecer Miami, não só pousar no aeroporto…

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Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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