Pense comigo, leitor. É uma lei da natureza que tudo aquilo que se desenvolve, à medida que progride, se diferencia. Tudo aquilo que decai, tanto quanto baixa, tanto se confunde. Por isso, diferenciação e desenvolvimento são termos correlatos,bem como em sentido inverso, decadência e indiferenciação.
A marcha da semente à árvore florida e depois cheia de frutos é a marcha da diferenciação. As sementes de uma mesma espécie se confundem, mas as árvores já formadas, a produzir flores e frutos, são nitidamente diversas uma das outras. Mas na decadência sucede o oposto.
E assim sucede com todos os seres vivos. Marcadamente com os animais superiores. De maneira exponencial com os homens. É uma fonte de desigualdade.
Considerem-se aquelas estátuas da Ilha de Páscoa (Chile). Produzidas por artistas primitivos, elas se parecem todas entre si. Mas se um Michelangelo lhes tivesse dado acabamento, elas deixariam de se confundir, e cada uma constituiria obra-prima à parte.
Ora, é o contrário que hoje sucede: os homens e os objetos vão se confundindo cada vez mais. Não apenas as hierarquias se achatam, como as próprias diferenças vão progressivamente se apagando.
De prazer em prazer, de bocejo em bocejo, o homem moderno vai perdendo o sentido do social, do que sucede à sua volta, e vai se afundando na massificação. Sua personalidade se deteriora. É o avanço do narcisismo, que em alguns casos vai atingindo as fronteiras do autismo1. Pelo menos de um autismo publicístico e metafórico, não clínico. Embora não perca todo contato com a realidade, o neo-autista quase não presta atenção nela, preferindo refugiar-se na mera coexistência com o que o cerca de muito perto.
“Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: a nossa”. E ainda: “O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”2. Exageros do dramaturgo Nelson Rodrigues? Em qualquer caso, com ele concorda García Márquez, que afirmou: “O ser humano não pode ser tão imbecil como foi no século XX”3.
Mas já estamos no século XXI. Melhorou?
Poder-se-ia também perguntar se entra cinismo nessa coexistência pacífica de tudo aquilo que não poderia coexistir. Como negá-lo? Mas é uma forma de cinismo que não se enxerga. Há certa naturalidade em aceitar o cinismo. É como ninguém conhecesse essa palavra ou todos ignorassem o respectivo sentido. E o cinismo piora à medida que a posição do hipócrita sobe, seja ela temporal ou espiritual na sociedade.
Um homem que, apesar de seus conhecidos defeitos, sabia muito bem observar e dizer – o dramaturgo Nelson Rodrigues – afirmou:
“Daqui a duzentos anos, os historiadores vão chamar este final de século de ‘a mais cínica das épocas’. O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas”4. Evidente demasia ou nem tanto?
Que Nossa Senhora nos ajude a sair dessa!
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1 – Narcisismo: admiração de si próprio, atenção exclusiva sobre si mesmo (Larousse Cultural, Nova Cultural, São Paulo, 1998). Autismo: desenvolvimento exagerado da vida interior e perda de todo contato com a realidade (Garnier-Delamare, Dicionário de termos técnicos de medicina, 20ª ed. – Org. Andrei Editora, S. Paulo, 1984).
2 – Nelson Rodrigues, Flor de Obsessão (Companhia das Letras, São Paulo, 1997, p. 150).
3 – In “Catolicismo”, n. 505, janeiro de 1993.
4 -> Nelson Rodrigues, op. cit., p. 150.
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