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Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo

Resistência Pública a Decisões da Autoridade Eclesiástica

Arnaldo Xavier da Silveira aborda resistência pública a decisões eclesiásticas, defendendo sua legitimidade em casos excepcionais.

Por Marcos Machado

30 minhá 1 ano — Atualizado em: 10/13/2023, 7:32:17 AM


Resistência Pública a Decisões da Autoridade Eclesiástica

São Paulo resiste face a São Pedro

Índice

  1. Bispos e autoridades eclesiásticas inferiores

O estudo de Arnaldo Xavier da Silveira — RESISTÊNCIA PÚBLICA A DECISÕES DA AUTORIDADE ECLESIÁSTICA — foi publicado em primeira mão no jornal Catolicismo, em 1969.

A matéria ganhou especial relevo em face do Sínodo da Sinodalidade que transcorre em Roma. Vamos transcrevê-la na íntegra.

Os Dubia dos 5 Cardeais têm sido um alento para todo o orbe católico porque, usando de seus privilégios e deveres põem ao Papa Francisco as questões sobre as quais pedem esclarecimento. Ora, essas são as questões que estão nas preocupações, indagações dos católicos.

A resposta do Vaticano não esclarece as dúvidas e os 5 Cardeais publicam uma atualização dos Dubia. Não se trata de rebeldia, é uma obrigação moral dos Cardeais ajudarem o Papa no governo da Santa Igreja. Se até eles não forem ouvidos do que vale a objetividade desse Sínodo da Sinodalidade?

O Sr. Julio Loredo, um dos autores do livro "Processo Sinodal, Caixa de Pandora" e Presidente da TFP italiana, diretamente da Itália, fez um vídeo explicando a polêmica que está dividindo a Igreja. Os "dubia" dos Cardeais e a falta de resposta do Papa Francisco. Entenda o que está ocorrendo, neste momento, na Igreja Católica e os graves riscos à Fé que o atual Sínodo da Sinodalidade comporta.
Livro Caminho sinodal

Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira

Vários leitores de "Catolicismo" manifestaram o desejo de que expuséssemos mais pormenorizadamente um ponto de doutrina que, de passagem, abordamos no último número deste jornal. Trata-se da tese de que, em face de uma decisão desacertada da autoridade eclesiástica, pode-se dar que ao católico esclarecido seja lícito não apenas negar o seu assentimento a essa decisão, mas também, em certos casos extremos, opor-se-lhe mesmo de público. Mais ainda, tal oposição pode constituir verdadeiro dever (cf. nosso artigo "Pode haver erro...", p. 8, 1a col.).

É com certa relutância que aprofundaremos essa matéria. No pensamento e na vida do católico, é tão essencial o princípio de autoridade, que preferiríamos não realizar novas investigações sobre a melindrosa questão da resistência a decisões da Hierarquia.

A isso, entretanto, nos obrigam hoje em dia alguns dentre os próprios membros da Sagrada Hierarquia, que a todo momento escandalizam o povo de Deus com seus pronunciamentos e atitudes inconciliáveis com a sã doutrina (cf., por exemplo, os documentos episcopais sobre a “Humanae Vitae” indicados em nosso artigo citado, “Pode haver erro…”, p. 7, 2a e 3a cols.).

Tais pronunciamentos e atitudes põem em risco a fé de muitas almas simples. Não nos é dado cruzar os braços ante tão grave mal.

Nosso objetivo, portanto, não é senão contribuir, embora modestamente, para esclarecer essas almas perplexas. Com tal fim, analisaremos o que a doutrina católica ensina sobre a possibilidade de resistência do fiel contra decisões disciplinares iníquas e contra ensinamentos errôneos de autoridades eclesiásticas.

Desejamos apenas a exaltação da Santa Igreja – sociedade visível [1], perfeita [2], hierárquica [3], monárquica [4], fora da qual não há salvação nem remissão dos pecados [5], e que, por direito divino, tem a missão de guardar e expor infalivelmente a doutrina revelada [6].

Como todo católico que busca ser fiel à Santa Igreja, preferimos perder a vida a praticar qualquer ação que traga detrimento para a salvação das almas. Mas preferimos também perder a vida a faltar ao dever – que incumbe mesmo os leigos – de combater, na medida das próprias possibilidades, pela defesa da Fé e dos bons costumes: “o membro [da Igreja] – diz o II CONCÍLIO VATICANO ao tratar do apostolado leigo – que não trabalha para o aumento do Corpo segundo sua medida, deve considerar-se inútil para a Igreja e para si mesmo” (“Apost. Actuosit.”, n.° 2).

Bispos e autoridades eclesiásticas inferiores

Na matéria que ora nos ocupa, preferimos não mesclar nossa voz com a dos grandes Santos e a dos teólogos aprovados na Santa Igreja. Assim sendo, no presente item e no seguinte limitar-nos-emos a reproduzir o que alguns deles disseram. A eles deixamos o encargo de nos ensinar não só qual o alcance da tese que defendem, como também quais os argumentos em que a fundamentam.

Não nos ocuparemos, senão de passagem, do princípio segundo o qual é lícito resistir, mesmo publicamente, aos Bispos e às autoridades eclesiásticas inferiores que, por sua má doutrina; por sua vida escandalosa ou por seus decretos iníquos, ponham em perigo a fé e a salvação das almas. Tantos são os exemplos, na História da Igreja, de Santos que ergueram a voz contra maus pastores, que a dificuldade antes consistiria em escolher as provas da legitimidade de tal procedimento. Entre os teólogos não há dúvida a respeito.

Ademais, demonstrando a liceidade – em certos casos extremos e raríssimos, mas em princípio possíveis – da resistência pública (e sempre respeitosa) ao próprio Sumo Pontífice, estaremos demonstrando implicitamente a liceidade de semelhante resistência a qualquer outra autoridade eclesiástica que se tenha transformado em corruptora da Fé ou dos bons costumes. Com efeito, se essa norma, em sã doutrina, vale em relação ao Papa, a fortiori valerá em relação a qualquer prelado.

Aplica-se ao caso, mutatis mutandis, uma consideração feita pelo Padre Nicola Spedalieri, ilustre teólogo italiano do século XVIII, a propósito do direito de resistir ao tirano temporal. Encontramo-la indicada na seguinte página de BALMES:

“Sabido é que o Papa, reconhecido como infalível quando fala ex cathedra, não o é, contudo, como pessoa particular, e neste conceito poderia cair em heresia. Em tal caso, dizem os teólogos que o Papa perderia a sua dignidade, sustentando uns que se deveria destituir, e afirmando outros que a destituição se realizaria pelo mero fato de se haver apartado da fé. Escolha-se uma qualquer destas opiniões, sempre se dará o caso de ser lícita a resistência: e isto por que? Porque o Papa se teria desviado escandalosamente do objeto de sua instituição, destruiria a base das leis da Igreja, que é o dogma, e por conseguinte caducariam as promessas e juramentos de obediência que se lhe haviam prestado. Spedalieri, ao propor este argumento, observa que não são certamente de melhor condição os Reis que os Papas, que a uns e outros foi concedida a potestade in aedificationem, non in destructionem [para edificar, não para destruir]; acrescentando que se os Sumos Pontífices permitem esta doutrina com respeito a eles, não devem ofender-se da mesma os Soberanos temporais” (vol. IV, cap. 56, pp. 78-79).

Também não devem ofender-se da mesma – acrescentaríamos nós – os Bispos e demais prelados.

Vejamos pois, apenas de passagem, alguns textos referentes à legitimidade de resistência pública à autoridade episcopal:

• D. GUÉRANGER. – Escrevendo sobre São Cirilo de Alexandria, insigne adversário do nestorianismo, Dom Prosper GUÉRANGER, Abade de Solesmes, ensina: “Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em primeiro lugar, cabe defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os súditos, no domínio da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da Revelação, pontos essenciais, que todo cristão, em vista de seu próprio título de cristão, necessàriamente conhece e obrigatoriamente há de defender” (pp. 340-341).

• HERVÉ. – Analisando os diversos fatores que contribuem para uma explicitação sempre maior dos dogmas ao longo dos séculos, HERVÉ elogia a oposição movida pelos fiéis contra Nestório, Patriarca herético de Constantinopla: “Sob o instinto do Espírito Santo, os fiéis podem ser conduzidos a uma melhor intelecção e crença em relação ao que incrementa a piedade e o culto, favorecendo desse modo o progresso do dogma. Com efeito, o murmurar dos fiéis contra Nestório foi de grande auxílio para a definição da Maternidade divina da Santíssima Virgem […]” (vol. III, p. 305).

• D. ANTONIO DE CASTRO MAYER. – O ilustre Bispo de Campos publicou recentemente um documento em que relembra a doutrina tradicional sobre o direito de resistência à autoridade eclesiástica iníqua. Trata-se da carta de aprovação ao magnífico “Vade-Mécum do Católico Fiel”, no qual quatrocentos Sacerdotes de diversos países, combatendo o progressismo, expõem os princípios da verdadeira Fé católica e convidam os fiéis a se oporem à nova heresia que hoje invade todo o orbe. Na sua carta de aprovação desse Vade-Mécum, o Sr. Bispo de Campos o declara sumamente oportuno e acrescenta:

“[…] não nos venham dizer que não pertence aos fiéis – como proclama o Vade-Mécum – ajuizar do que se passa na Igreja; que lhes compete apenas seguir docilmente a orientação dada pelos Ministros do Senhor.

Não é verdade. A História da Igreja elogia a atitude dos fiéis de Constantinopla que se opuseram à heresia do seu Patriarca Nestório”.

A seguir, D. Antonio de Castro MAYER cita o texto de Dom GUÉRANGER que reproduzimos acima.

“Resisti-lhe em face, porque merecia repreensão”

Será legítimo, em casos extremos, resistir até mesmo contra decisões do Soberano Pontífice?

Respondendo a essa pergunta, transcreveremos apenas documentos relativos à resistência pública porque, se em certas circunstâncias esta é legítima, com mais razão o será opor-se privadamente a uma decisão papal. Autor algum, de que tenhamos notícia, jamais levantou dúvidas quanto ao direito de semelhante oposição privada. Esta poderá fazer-se de duas maneiras: expondo à Santa Sé as razões que haja contra o documento; ou através da chamada “correção fraterna”, isto é, de uma advertência feita em particular, com o objetivo de obter a emenda da falta cometida. [7]

Passemos aos textos que admitem a resistência pública em casos especialíssimos:

• SÃO TOMÁS DE AQUINO. – Ensina o Doutor Angélico, em diversas de suas obras, que em casos extremos é lícito resistir publicamente a uma decisão papal, como São Paulo resistiu em face a São Pedro: “[…] havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser argüidos, até mesmo publicamente, pelos súditos. Assim, São Paulo, que era súdito de São Pedro, argüiu-o publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em matéria de Fé. E, como diz a Glosa de Santo Agostinho, “o próprio São Pedro deu o exemplo aos que governam, a fim de que estes, afastando-se alguma vez do bom caminho, não recusassem como indigna uma correção vinda mesmo de seus súditos” (ad Gal. 2, 14)” (SÃO TOMÁS, “Summ. Theol.”, II-II, 33, 4, 2).

No comentário à Epístola aos Gálatas, ao estudar o episódio em que São Paulo resistiu em face a São Pedro, assim escreve SÃO TOMÁS:

“A repreensão foi justa e útil, e o seu motivo não foi leve: tratava-se de um perigo para a preservação da verdade evangélica […].

O modo como se deu a repreensão foi conveniente, pois foi público e manifesto. Por isso, São Paulo escreve: “Falei a Cefas”, isto é, a Pedro, “diante de todos”, pois a simulação praticada por São Pedro acarretava perigo para todos. — Em 1 Tim. 5, 20, lemos: “aos que pecarem, repreende-os diante de todos”. Isso se há de entender dos pecados manifestos, e não dos ocultos, pois nestes últimos deve-se proceder segundo a ordem própria à correção fraterna” (SÃO TOMÁS, ad. Gal. 2, 11-14, lect. III, nn. 83-84).

SÃO TOMÁS observa ainda que a referida passagem da Escritura contém ensinamentos tanto para os prelados quanto para os súditos: “aos prelados [foi dado exemplo] de humildade, para que não se recusem a aceitar repreensões da parte de seus inferiores e súditos; e aos súditos [foi dado] exemplo de zelo e liberdade, para que não receiem corrigir seus prelados, sobretudo quando o crime for público e redundar em perigo para muitos” (idem, ibidem, n. 77).

• VITORIA. — Escreve o eminente teólogo dominicano do século XVI:

“Caietano, na mesma obra em que defende a superioridade do Papa sobre o Concílio, diz no cap. 27: “Logo, deve-se resistir em face ao Papa que publicamente destrói a Igreja, por exemplo não querendo dar benefícios eclesiásticos senão por dinheiro ou em troca de serviços; e se há de negar, com toda a obediência e respeito, a posse de tais benefícios àqueles que os compraram”.

E Silvestre [Prierias], na palavra Papa, § 4, pergunta: “Que se há de fazer quando o Papa, por seus maus costumes, destrói a Igreja?” E no § 15: “Que fazer se o Papa quisesse, sem razão, ab-rogar o Direito positivo?” A isso, responde: “Pecaria certamente; não se deveria permitir-lhe agir assim, nem se deveria obedecer-lhe no que fosse mau; mas dever-se-ia resistir-lhe por uma repreensão cortês”.

Em conseqüência, se desejasse entregar todo o tesouro da Igreja ou o patrimônio de São Pedro a seus parentes, se desejasse destruir a Igreja, ou outras coisas semelhantes, não se lhe deveria permitir que agisse de tal forma, mas ter-se-ia a obrigação de opor-lhe resistência. A razão disso está em que ele não tem poder para destruir; logo, constando que o faz, é lícito resistir-lhe.

De tudo isto resulta que, se o Papa, com suas ordens e seus atos, destrói a Igreja, pode-se resistir-lhe e impedir a execução de seus mandados […].

Segunda prova da tese. Por direito natural é lícito repelir a violência pela violência. Ora, com tais ordens e dispensas, o Papa exerce violência, porque age contra o Direito, conforme ficou acima provado. Logo, é lícito resistir-lhe. Como observa Caietano, não afirmamos tudo isto no sentido de que a alguém caiba ser juiz do Papa ou ter autoridade sobre ele, mas no sentido de que é lícito defender-se. A qualquer um, com efeito, assiste o direito de resistir a um ato injusto, de procurar impedi-lo e de defender-se” (VITORIA, pp. 486-487).

• SUAREZ. “Se [o Papa] baixar uma ordem contrária aos bons costumes, não se há de obedecer-lhe; se tentar fazer algo manifestamente oposto à justiça e ao bem comum, será lícito resistir-lhe; se atacar pela força, pela força poderá ser repelido, com a moderação própria à defesa justa [cum moderamine inculpatae tutelae]” (“De Fide”, disp. X, sect. VI, n. 16).

• SÃO ROBERTO BELLARMINO. — “[…] assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo, pois estes atos são próprios a um superior” (“De Rom. Pont.”, lib. II, c. 29).

• CORNÉLIO A LAPIDE. — Mostra o ilustre exegeta que, segundo Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Beda, Santo Anselmo e muitos outros Padres, a resistência de São Paulo a São Pedro foi pública “para que desse modo o escândalo público dado por São Pedro fosse remediado por uma repreensão também pública” (ad Gal. 2, 11).

Depois de analisar as diversas questões teológicas e exegéticas suscitadas pela atitude assumida por São Paulo, Cornélio a LAPIDE escreve: “que os superiores podem ser repreendidos, com humildade e caridade, pelos inferiores, a fim de que a verdade seja defendida, é o que declaram, com base nesta passagem [Gal. 2, 11], Santo Agostinho (Epist. 19), São Cipriano, São Gregório, São Tomás e outros acima citados. Eles claramente ensinam que São Pedro, sendo superior, foi repreendido por São Paulo […]. Com razão, pois, disse São Gregório (Homil. 18 in Ezech.): “Pedro calou-se a fim de que, sendo o primeiro na hierarquia apostólica, fosse também o primeiro em humildade”. E Santo Agostinho escreveu (Epist. 19 ad Hieronymum): “Ensinando que os superiores não recusem deixar-se repreender pelos inferiores, São Pedro deu à posteridade um exemplo mais incomum e mais santo do que deu São Paulo ao ensinar que, na defesa da verdade, e com caridade, aos menores é dado ter a audácia de resistir sem temor aos maiores” (ad Gal. 2, 11).

• WERNZ E VIDAL. — Citando Suarez, a obra “Ius Canonicum”, de WERNZ-VIDAL, admite que, em casos extremos, é lícito resistir a um mau Papa: “Os meios justos a serem empregados contra um mau Papa são, segundo Suarez (“Defensio Fidei Catholicae”, lib. IV, cap. 6, nn. 17-18), o auxílio mais abundante da graça de Deus, a especial proteção do Anjo da Guarda, a oração da Igreja Universal, a advertência ou correção fraterna em segredo ou mesmo de público, bem como a legítima defesa contra uma agressão quer física quer moral” (vol. II, p. 520).

• PEINADOR. — Os autores de nossos dias fazem suas as asserções dos antigos sobre a matéria que estamos analisando. Assim é que PEINADOR, citando largos trechos de São Tomás, escreve: “[…] “também o súdito pode estar obrigado à correção fraterna de seu superior” [S. Teol., II-II, 33, 4]. Pois também o superior pode ser espiritualmente indigente, e nada impede que de tal indigência seja libertado pelo súdito. Todavia, “na correção pela qual os súditos repreendem a seus prelados, cumpre agir de modo conveniente, isto é, não com insolência e aspereza, mas com mansidão e reverência” [S. Teol., ibidem]. Por isso, em geral o superior deve ser sempre advertido privadamente. “Tenha-se entretanto presente que, havendo perigo próximo para a fé, os prelados devem ser argüidos, até mesmo publicamente, pelos súditos” [S. Teol., II-II, 33, 4, 2]” (PEINADOR, tomus II, V01. I, p. 287). [8]

Uma divergência, que reputamos apenas aparente

Como vemos, são numerosos e de grande peso os autores que declaram lícito, em casos extraordinários, opor-se mesmo de público a alguma decisão errônea da autoridade eclesiástica, e até da Sé Romana. Se a isso acrescentarmos os exemplos históricos de Santos que procederam dessa forma, concluiremos que se trata de tese pacífica na Santa Igreja.

Um fato existe, contudo, que a alguns parecerá tirar a essa tese o seu caráter pacífico: em obras tanto de Dogma quanto de Moral, é freqüente — e mesmo comum — a sentença de que nunca é lícito ao fiel romper o silêncio obsequioso em relação a um documento papal, mesmo em face da evidência de que nele existe algum erro.

Em artigo anterior já abordamos a delicada questão da quebra do silêncio obsequioso (cf. “Pode haver erro…”). Apenas para fixar os dados fundamentais do problema, resumiremos ràpidamente o que escrevemos então:

• 1 — um documento do Magistério só é por si próprio infalível quando preenche as quatro condições explicitadas pelo Concílio do Vaticano;

• 2 — os documentos que não preenchem essas condições não são de si infalíveis, e podem, portanto, em princípio e em casos embora raríssimos, conter algum erro;

• 3 — não é, pois, de se excluir, em princípio, a hipótese de que pessoa douta, depois de acurado exame de determinado documento do Magistério não infalível, chegue à evidência de que nele há algum erro.

• 4 — nessa hipótese, será necessário agir com circunspecção e humildade, empregando todos os meios razoáveis para esclarecer a questão, entre os quais avulta a representação ao órgão do Magistério de onde emanou o documento;

• 5 — se, empregados todos os recursos aconselháveis, persistir a evidência do erro, será lícito suspender, nesse ponto, o assentimento interno que de si o documento postula.

Aqui se põe a questão que ora nos ocupa: será lícito também, pelo menos em casos extremos, recusar à declaração pontifícia o acatamento externo, isto é, o chamado silêncio obsequioso? Em outras palavras: em alguma hipótese será lícito, opor-se externamente, quiçá mesmo de público, a um documento do Magistério romano?

É na resposta a essa pergunta que os autores aparentemente divergem.

De uma parte, com efeito, grandes teólogos, como os citados acima, admitem em princípio que, em certas circunstâncias, o fiel tem o direito e mesmo o dever de “resistir em face” a Pedro. De outra parte, teólogos eminentes parecem sustentar que em hipótese absolutamente nenhuma será lícito romper o chamado silêncio obsequioso.

Antes, porém, de propor a solução que julgamos conciliar as opiniões de uns e outros, desejamos colocar sob os olhos do leitor alguns textos característicos em que parece estar fechada qualquer porta para uma quebra do silêncio obsequioso.

O silêncio obsequioso parece impor-se sempre

• STRAUB. — Assim expõe STRAUB a questão: “pode acontecer, per accidens, que […] a alguém o decreto se apresente como certamente falso, ou como oposto a um argumento tão sólido, […] que a força desse argumento não seja de forma alguma anulada pelo peso da autoridade sagrada; […] na primeira hipótese, será lícito dissentir; na segunda, será lícito duvidar, ou ainda ter como provável a sentença discrepante do decreto sagrado; contudo, em vista da reverência devida à autoridade sagrada, NÃO SERÁ LÍCITO CONTRADIZÉ-LA PUBLICAMENTE […], MAS DEVERÁ SER MANTIDO O SILÊNCIO, denominado obsequioso” (STRAUB, vol. II, § 968; cf. SALAVERRI, p. 725 — o destaque em versalete é nosso).

• MERKELBACH. — Na “Summa Theologiae Moralis”, MERKELBACH encerra com as seguintes palavras o exame da matéria: “se per accidens, numa hipótese, entretanto raríssima, depois de exame muito cuidadoso, a alguém parecer que existem razões gravíssimas contra a doutrina assim proposta, será lícito, sem temeridade, suspender o assentimento interno; externamente, entretanto, SERÁ OBRIGATÓRIO O SILÊNCIO OBSEQUIOSO, em razão da reverência devida à Igreja” (vol. I, p. 601 — o destaque em versalete é nosso).

• MORS. — Conceitua o Pe. José MORS silêncio obsequioso da seguinte forma: “é a sujeição externa e reverencial à autoridade eclesiástica; consiste em que nada seja dito (de público) contra seus decretos. Tal silêncio é exigido pelo apreço devido à autoridade eclesiástica e pelo bem da Igreja, MESMO NO CASO EM QUE O CONTRÁRIO FÔSSE VERDADEIRAMENTE EVIDENTE” (TOMUS II, p. 187 — o destaque em versalete é nosso).

E o Pe. MORS, depois de expor a doutrina tradicional sobre o assentimento devido aos documentos do Magistério, conclui: “Entretanto, se houver contra o decreto razões verdadeiramente evidentes, cessará a obrigação do assentimento interno; MAS MESMO ENTÃO PERMANECERÁ A OBRIGAÇÃO DO SILÊNCIO. Tal caso, contudo, não ocorrerá facilmente” (idem, ibidem — o destaque em versalete é nosso).

• ZALBA. — “Per accidens, o assentimento interno poderá ser negado, caso conste com certeza a falsidade [do ensinamento de uma Congregação Romana]; do mesmo modo, será lícito duvidar, quando houver para isso razões verdadeiramente sólidas. Mas tanto num caso como no outro, CUMPRE MANTER O SILÊNCIO OBSEQUIOSO EXTERNO” (vol. II, p. 30, nota 21).

• OUTROS AUTORES. — No mesmo sentido, pronunciam-se ainda: TANQUEREY, “Syn. Theol. Dogm.”, tomus I, p. 640; CHOUPIN, p. 91; CARTECHINI, p. 154.

Dois exemplos esclarecedores

Haverá verdadeira contradição entre a sentença dos teólogos que defendem a liceidade, em casos muito raros, de resistir publicamente a decisões papais, e a dos que declaram sempre ilícita a quebra do silêncio obsequioso? Serão, essas, duas orientações diversas que têm real e efetivamente dividido os autores?

Não o cremos. Uma análise detida da questão mostrará ser fácil harmonizar as duas sentenças — que, portanto, a nosso ver, são entre si contraditórias apenas na aparência.

Com efeito, é freqüente em Teologia, sobretudo em Moral — e o nosso caso é antes de ordem moral do que dogmática — encontrar afirmações genéricas, taxativas, absolutas, que, todavia, não têm o valor universal que aparentam. O autor resolve uma questão em princípio, não considerando toda a riquíssima casuística que poderia trazer maiores precisões à solução proposta. Ou, visando resolver um caso concreto, apresenta sua conclusão em termos abstratos e gerais, o que pode fazer crer — contra o seu próprio pensamento mais profundo — que a norma enunciada não admite exceções.

Dois exemplos tornarão mais fácil a intelecção do fato a que aludimos. Tomemos, de um lado, a aparente condenação da propriedade privada por Padres da Igreja e autores medievais; e, de outro, a proscrição do empréstimo a juros, por SÃO TOMÁS DE AQUINO e pelos antigos em geral.

a) APARENTES CONDENAÇÕES DA PROPRIEDADE PRIVADA

SANTO AMBRÓSIO escreveu: "A natureza deu a todos em comum. Deus ordenou que todas as coisas fossem feitas de modo que o alimento fosse comum a todos e a terra se tornasse propriedade comum de todos" ("De Offic.", lib. 1, c. 28 — apud CATHREIN, ri.° 457).

Além disso, vários Padres da Igreja e O "CORPUS JÚRIS CANONICI" declaram que a ninguém é lícito dizer: "isto é meu", porque a natureza fez tudo de todos (cf. CATHREIN, n.° 457).

Semelhantes asserções, tão genéricas e absolutas, no entanto não têm o valor universal que aparentam. Os mesmos Padres que as formulam, em outras passagens afirmam claramente a legitimidade da propriedade privada (cf. CATHREIN, § 457; SCHWALM, "D. T. C.", cols. 579 ss.; URDANOZ, coment. à "Suma Teol.", tomo VIII, p. 480). Nos textos em apreço, os referidos Padres ou visam combater o apego excessivo aos bens materiais; ou visam afirmar o princípio de que, na hipótese de necessidade extrema, prevalece a destinação comum dos bens sobre o direito do proprietário; ou visam ainda dar ênfase a outros princípios da doutrina católica sobre os limites do direito de propriedade.

O que é certo, entretanto, é que suas afirmações contrárias à posse individual dos bens materiais não têm o valor absoluto que lhes poderia atribuir um leitor menos avisado (cf. CATHREIN, § 457; SCHWALM, "D. T. C.", cols. 585-586; PEINADOR, tomus II, vol. I, § 264, nota 27; URDANOZ, coment. à "Suma Teol.", vol. VIII, pp. 479-481).

b) APARENTES CONDENAÇÕES DE TODO E QUALQUER EMPRÉSTIMO A JUROS

Outro exemplo, muito esclarecedor, do fenômeno a que aludimos, é o da condenação, pelos antigos, do empréstimo a juros. SÃO TOMÁS, por exemplo, escreve de modo taxativo: "receber juros por um empréstimo de dinheiro é em si injusto" ("Summa Theol.", 78, 1, c.). O caráter absoluto da asserção parece indicar que, para o Doutor Angélico, em toda e qualquer situação histórica o empréstimo a juros seria imoral.

Ora, uma análise cuidadosa dos escritos de SÃO TOMÁS, e dos antigos em geral, mostra que eles proscreviam os juros porque consideravam o dinheiro um simples instrumento destinado a facilitar as trocas. Na economia moderna, entretanto, a função do dinheiro alargou-se extraordinariamente. Além de facilitar as trocas, passou a representar os próprios bens pelos quais pode ser a qualquer momento permutado: "quem é dono do dinheiro — escreve CATHREIN — possui, não formalmente, mas equivalentemente, tudo aquilo que em concreto pode ser adquirido com esse dinheiro" (§ 498).

Assim sendo, o empréstimo a juros tem hoje um caráter fundamentalmente diverso do que tinha na Idade Média, equiparando-se de algum modo à locação ou aluguel. Os moralistas não hesitam, pois, em declarar que SÃO TOMÁS, apesar de suas afirmações absolutas em sentido contrário, não condenaria os juros numa ordem econômica como esta em que vivemos (cf. CATHREIN, pp. 344-351; TANQUEREY, "Syn. Theol. Mor. et Past.", tomus III, pp. 445-448; DU PASSAGE, "D. T. C.", cols. 2382-2390; PEINADOR, tomus II, vol. II, pp. 266 SS.; URDANOZ, coment. à "Suma Teol.", tomo VIII, p. 688).

Desfazendo uma divergência aparente

Isto posto, convidamos o leitor a reler detidamente as passagens acima referidas, ou quaisquer outras em que teólogos declarem ser sempre ilícita a quebra do chamado silêncio obsequioso. O texto e o contexto de tais passagens tornam patente que nelas se estabelece apenas um princípio geral, válido para os casos ordinários. Não se consideram, ali, hipóteses admissíveis, mas raras e extraordinárias, mais próprias à casuística, como são aquelas que tinham em vista SÃO TOMÁS DE AQUINO e os demais autores anteriormente citados. Não se considera, por exemplo:

- a hipótese de um erro que acarrete ao povo cristão "perigo próximo para a fé" (como se deu, explica SÃO TOMÁS, no episódio em que São Paulo resistiu em face a São Pedro);

- a hipótese de erro que constitua uma "agressão às almas" (expressão de São ROBERTO BELLARMINO).

Em outros termos, a leitura das passagens em que os autores declaram proibido todo e qualquer rompimento do silêncio obsequioso, mostra que eles consideram apenas o caso de alguém que, "in sede doctrinaria", isto é, no mero terreno da especulação teológica, diverge de um ponto do documento magisterial. Eles não têm em vista, com isso, declarar que também no terreno prático, na solução de um caso de consciência concreto que aflige o fiel, seja sempre ilícito agir publicamente em desacordo com a decisão do Magistério.

Se tais autores, portanto, fossem colocados diante de "um perigo próximo para a fé" (SÃO TOMÁS), podemos sustentar com toda a segurança que também eles, seguindo as pegadas do Anjo das Escolas — para não dizermos as de São Paulo — autorizariam uma resistência pública.

Se se vissem em face de uma "agressão às almas" (SÃO ROBERTO BELLARMINO) ou de um "escândalo público" (cf. Cornelio a LAPIDE) em matéria doutrinária; ou de um, Papa "que se houvesse afastado do bom caminho" (SANTO AGOSTINHO) por seus ensinamentos errôneos e ambíguos; ou de um "crime público" que redundasse em perigo para a fé de muitos (SÃO TOMÁS) como poderiam negar a direito de resistência e, se necessário, de resistência pública?

A nosso ver, seria absolutamente insuficiente e mesmo falha a explicação — que poderia ocorrer a alguns — de que a referida divergência entre os autores se resolveria com a distinção entre as decisões disciplinares e as doutrinárias. Às primeiras seria lícito resistir, às segundas não. Semelhante explicação nos parece falsa por duas razões principais:

■ 1 — os argumentos apresentados pelo primeiro grupo de autores citados valem para decisões tanto doutrinárias quanto disciplinares. Umas e outras podem, por exemplo, acarretar o "perigo próximo para a fé" em que SÃO TOMÁS baseia seu raciocínio. E, por outro lado, os argumentos do segundo grupo de autores também valem para as decisões disciplinares como para as doutrinárias.

Se o "respeito devido à autoridade sagrada", por exemplo, exige um silêncio absoluto em face de decisões doutrinárias errôneas, por que não o exigirá em face de decretos disciplinares injustos?

■ 2 — desde que se admita a possibilidade de erro doutrinário em documentos do Magistério — possibilidade essa que em princípio não se vê como excluir (cf. nosso artigo "Pode haver erro...") — é inquestionável que também no terreno doutrinário haverá lugar para casos de consciência gravíssimos, que tornem lícita ou mesmo obrigatória a resistência do fiel. Sustentar o contrário seria desconhecer ou negar o papel fundamental da Fé na vida cristã.

"Doutores e pais dos povos cristãos"

Em conclusão, só nos resta professar uma vez mais nossa humilde e amorosa submissão, em toda a medida prescrita pelas leis canônicas, àqueles que, "postos pelo Espírito Santo, sucedem aos Apóstolos como pastores das almas, e, juntamente com o Sumo Pontífice e sob sua autoridade, receberam a missão de tornar perene a obra de Cristo, Pastor eterno" (II CONC. VAT., Decreto "Christus Dominus", n.° 2).

Para manifestar esses sentimentos que trazemos na alma, apraz-nos recordar algumas expressões eloqüentes das Escrituras Sagradas com que Pio XI ("Ubi Arcano", p. 21) enaltece o munus episcopal: os Bispos são, na Igreja, "membros principais, unidos por laços de ouro, que mantêm a forte unidade do Corpo de Cristo" (cf. Ef. 15-16); são "doutores e pais dos povos cristãos, modelo do rebanho" (cf. 1 Ped. 3), constituídos pelo Espírito Santo "para governar a Igreja de Deus" (cf. At. 20, 28).

Citações

  1. cf. Denz.- Umb. 86, 223, 247, 347, 430 ss., 464, 468, 999, 1686, 1793 ss., 1821 ss., 1955 ss.
  2. cf. Denz.-Umb. 330 ss., 498, 1698, 1719 ss., .1841 ss., 1847, 1867, 1869, 2203
  3. cf. Denz.-Umb. 41 ss., 44 ss., 150 ss., 272, 361, 424, 426, 434, 498, 675, 687, 853, 960, 966 ss., 2145
  4. cf. Denz.-Umb. 44, 498, 633, 658 ss., 1325, 1500, 1503, 1698 ss., 1821, 2091, 2147a
  5. cf. Denz.-Umb. 2 ss., 14, 39 ss., 246 ss., 423, 430, 468 ss., 570b, 714, 999 ss., 1473, 1613 ss., 1646 ss., 1677, 1716 ss., 1954 ss., 2199
  6. cf. Denz.-Umb. 160, 767, 1444, 1512, 1617, 1675, 1839, 1957 ss., 1969, 2147
  7. Sobre a resistência privada a decisões papais ou das Congregações Romanas, pode-se ver: SÃO TOMÁS DE AQUINO, in IV Sent., dist. 19, q. 2, a. 2; "Summa Theol.", II-II, 33, 4; SUAREZ, "Def. Fidei Cath.", lib. IV, cap. VI, nn. 14-18; PESCH, tomus I, pp. 314-315; Bouix, tomus II, pp. 635 SS.; HURTER, tomus 1, pp. 491-492; PEINADOR, tomus II, vol. I, pp. 286-287; SALAVERRI, pp. 725726.
  8. OUTROS AUTORES. — Para maior aprofundamento dessa matéria, pode-se ainda ver: SÃO TOMÁS DE AQUINO, in IV Sent., d. 19, q. 2, a. 2, ql. 3, sol. et ad 1; SUAREZ, "De Legibus", lib. IX, cap. XX, nn. 19-29; "Def. Fidei Cath.", lib. IV, cap. VI, nn. 14-18; REIFFENSTUEL, tract. IV, dist. VI, q. 5, nn. 51-54, pp. 162-163; MAYOL, q. III, a. 4, col. 918; GURY-BALLERINI, tomus I, pp. 222-227; Card. C. MAZZELLA, pp. 747-748; URDANOZ, coment. a Vitoria, pp. 426-429.

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Fonte: Revista catolicismo

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Marcos Machado

Marcos Machado

492 artigos

Pesquisador e compilador de escritos do Prof. Plinio. Percorreu mais de mil cidades brasileiras tomando contato direto com a população, nas Caravanas da TFP. Participou da recuperação da obra intelectual do fundador da TFP. Ex aluno da Escola de Minas de Ouro Preto.

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