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13 min — há 7 anos — Atualizado em: 2/16/2018, 4:09:33 PM
Georges D. era aposentado, gozava de boa pensão e possuía atraente cultura. Bom observador, sua acuidade penetrava a realidade dos acontecimentos, degustava-a, e, ao narrá-la, integrava seus interlocutores na cena descrita. Quem o ouvia tinha a impressão de ter participado no evento narrado.
Os amigos renunciavam ao teatro ou ao futebol para estar num domingo à tarde com ele. Francês de velha estirpe burguesa, Georges manejava com naturalidade e despretensão a arte da conversa. Nascido e criado na Lorena, próximo da fronteira alemã, começara ainda moço sua carreira de engenheiro de minas, durante a Segunda Guerra Mundial.
Sobreviveu aos dias de provação que se seguiram ao conflito mundial. As dificuldades lhe ensinaram a distinguir as situações e a conhecer as mentalidades. Este conhecimento era o sal de sua conversa. Embora casado havia mais de 50 anos, sua esposa Jeanne também não se cansava de ouvi-lo. Ele era de fato interessante.
Georges faleceu. Não houve enterro – fato que estranhou os amigos, embora ninguém dissesse nada. Houve cremação. Expedita, com orações ecumênicas gravadas em fita magnética e música New Agebanhando com gotas de inquietante mistério aquela despedida. Nenhum ritual piedoso, embora ele e a mulher fossem católicos. Nunca se soube qual dos dois optou pela cremação.
Jeanne depositou as cinzas do marido dentro de uma caixa em forma de livro e “arquivou-a” em sua estante, acima da televisão, na sala de visitas, entre seus volumes de arte culinária. Quem quisesse fazer uma oração ou levar uma flor à sepultura do amigo, relembrar as conversas com ele, as tardes de domingo passadas juntos, seus ditos, a subtilidade de suas observações, não podia.
Contudo, a velha amizade dos amigos reclamava por essa singela homenagem. Mas ela não era possível. As mesmas chamas que rápida e violentamente reduziram a cinzas seu corpo pareciam ter também consumido sua lembrança. Vinte centímetros acima da profanidade dos programas de televisão, das comédias ou das novelas obscenas jazia Georges com sua simpatia e sua verve borbulhante. Era impossível, ali, dizer sequer uma Ave-Maria por sua alma.
Segundo artigo de A. Favole (“Corriere della Sera”, 28-2-17), Renato Bialetti, falecido no início do ano passado, inventor de uma cafeteira de grande sucesso – a Moka –, quis ser cremado e ter suas cinzas postas dentro de uma das unidades de sua invenção. Sua maquineta de coar café foi sua sepultura. Ela presidiu seus funerais. Gene Roddenberry, famoso produtor e cenarista da televisão norte-americana, quis que suas cinzas, bem como as de sua mulher, fossem lançadas no espaço extraterrestre. Há mesmo uma firma comercial que se encarrega desses funerais cósmicos.
François Michaud Nérard (Une révolution rituelle, Atelier, 2012), mostra a cremação como uma profunda transformação nos hábitos dos franceses. Em menos de 40 anos os ritos de réquiemimemoriais foram convulsionados. Até 1980 somente 1% dos franceses optava pela cremação. Hoje cerca de 50% dizem preferi-la. Nos países do Norte da Europa essa preferência pode chegar a 75%.
A cremação avança com a materialização dos costumes. Por ocasião de funerais, lentamente se sobrepõem à ideia de Deus outras concepções de estilo econômico [a cremação custa menos], ou utilitário [imensas áreas ocupadas por cemitérios podem servir melhor à comunidade de outra maneira], ou de ordem higiênica [não contaminar o subsolo], ou sentimentais. Testamentos dispõem que as cinzas sejam jogadas no mar, dispersas nas montanhas ou em campos de futebol. Favole afirma nesse mesmo artigo que agora se propugna também a dispersão das cinzas dentro de cemitérios, em lugares chamados “jardim da lembrança”. O que se vê, na realidade, é o avanço de ideias anticristãs sob pretextos vários.
Por que recusar a sepultura e a sacralidade da inumação, preferindo a brutal e imediata destruição do corpo? Enterrar os mortos sempre foi grave dever dos cristãos. Desde o início da Cristandade a Igreja adotou essa prática, não só em razão de seus ensinamentos, mas também pelo aspecto simbólico da inumação. Por essa razão, os corpos dos mortos sempre foram objeto de respeitosa atenção. Houve condenações de Papas em tempos idos aos procedimentos abjetos com os mortos para conservá-los ou transportá-los. Queimá-los era também considerado um procedimento indigno, próprios aos pagãos.
Noutra localidade da Lorena, também pequena e não longe da casa de Georges, vivia solitário Antoine M.. Viúvo, sem filhos, com os poucos parentes dispersos, ele costumava dizer ao pároco de sua cidade, Pe. Michel R., que no mundo só tinha um amigo verdadeiro: a bela árvore de seu quintal. Ele amava aquela árvore. Cuidava dela, regando-a e adubando-a. De fato, era um frondoso castanheiro.
No verão Antoine comia prazenteiro à sua sombra, e no inverno queimava na lareira alguns poucos ramos podados com cuidados cirúrgicos no início do outono. Olhando o fogo, encantava-se com a elegância incomparável das labaredas liberadas por seus galhos ao entrar em combustão, e respirava fundo o agradável odor do seu lenho abrasado. Tudo vinha de seu castanheiro.
Sentindo vacilantes suas forças, Antoine fez testamento. Sua última vontade determinava a cremação de seu corpo e a subsequente deposição das cinzas em torno da árvore tão amada. Seria sua última homenagem a este ser que tanto o consolara em vida. E de fato, poucos anos mais tarde, Antoine morreu. Tudo foi feito conforme seu testamento: cremação e cinzas depositadas ao pé da árvore.
Herdeiro da casa — e consequentemente da árvore — foi um sobrinho de Antoine, que nela veio morar. Veio de Marselha, onde residia ao falecer Antoine. Acostumado a temperaturas tépidas do Mediterrâneo, o sobrinho achou que na Lorena o sol se mostra bem menos. A árvore do finado tio tirava-lhe o pouco de calor solar de que dispunha. Mandou cortar a árvore. Uma impiedosa motosserra reduziu então o único amigo de Antoine a achas de lenha. E junto com a terra em volta do belo arvoredo e as cinzas dele, tudo foi levado à lixeira pública. Fingindo-se horrorizado e com sorriso matreiro, o Pe. Michel contava o fato a todos do lugar.
Do ponto de vista da Religião, São Paulo diz:“Rogo-vos, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, que ofereçais vossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus, como um culto razoável. E não vos conformeis com este século, mas reformai-vos com a renovação do vosso espírito, para que conheçais qual é a vontade de Deus boa, perfeita e agradável.” [Rom I, 1-2].
Como calcinar como rejeito indesejável esse corpo, ao qual se refere o Apóstolo, santificado pelo Batismo e pela recepção da Sagrada Eucaristia, vivificado por uma alma elevada à vida divina pela graça e templo do Espírito Santo?
No hábito da cremação não está presente a ideia do repouso de quem entregou sua alma a Deus — requiescat in pace (descanse em paz). Tudo se passa de modo expedito. O funeral perde seu sentido solene e os ritos de réquiem são despidos de grandeza. O ato se reveste da aparência de uma aniquilação absoluta no momento em que as chamas reduzem violentamente a cinzas feições por anos contempladas no lar com estima e amor.
Com o sepultamento a Igreja torna sensível, de modo simbólico, a crença no dogma da ressurreição dos corpos. Para a Igreja, o sepulcro é um dormitório no qual aguardam a ressurreição os restos mortais que ali repousam quais sementes depositadas no solo, das quais germinará, após o Juízo Final, a imortalidade. Numa terra consagrada, à sombra da cruz, o corpo do fiel aguarda a ressurreição tal como Jesus que, morto e sepultado, ressurgiu dos mortos. Esse corpo merece respeito em vista daquilo que ele foi e será por toda a eternidade.
O aspecto profano da incineração num forno crematório viola este respeito aos olhos de quem presencia tal procedimento. Dispôs a Igreja, ao dizer aos mortais “Memento homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris”, que lenta e naturalmente o corpo deve retornar ao pó da terra no qual teve origem. Trata-se de numa transformação natural, segundo os ritmos orgânicos, e não de uma destruição artificial.
Mãe compassiva, a Igreja toma em consideração a estima existente entre entes queridos. O amor paterno ou o amor filial, todo afeto humano, se sublimam no momento da morte. Imaginá-los nas contorções da incineração repugna aos bons sentimentos. Entretanto a todos consola saber que, sob a terra abençoada, aquela figura aos poucos desaparecerá, segundo a ordem natural estabelecida por Deus: “… in pulverem reverteris” — em pó te hás de converter.
A cremação também é um gesto simbólico. Seu procedimento visa obscurecer a presença do dogma da ressurreição da carne. Pelo contrário, a esperança da ressurreição está clara ao se encomendar a alma a Deus. Os primeiros propugnadores da incineração desejavam afastar a presença da Religião dos atos realizados em torno da morte.
Na França, foi a Revolução de 1789 a primeira a propugnar a cremação. Sua concepção anticristã lançou de modo organizado a campanha pela incineração. Nos anos que se seguiram à Revolução Francesa, durante o início do século XIX, doutrinas materialistas e ateias intensificaram a propaganda em prol da incineração. Assim, no início do século XX, sob diversos pretextos, os fornos crematórios começaram a se estabelecer na Europa.
A Igreja mostrava decidida oposição à cremação. Ao longo do ano de 1886, o Santo Ofício promulgou documentos refutando as falsas doutrinas dos propugnadores da queima de cadáveres. A refutação mostrava que “artifícios e sofismas enganadores contribuíam insensivelmente à diminuição da estima e do respeito do costume cristão de inumar os corpos dos fiéis, costume este de uso constante e consagrado pelos ritos solenes da Igreja”.
Era então negada aos fiéis que por sua própria vontade tinham optado pela cremação, não só sepultura eclesiástica, mas também a celebração de Missas públicas. Esses faltosos eram também declarados indignos dos últimos sacramentos. A Igreja assim agia por conveniências dogmáticas, a fim de salvaguardar o culto e os hábitos morais dos fiéis. (Dictionnaire Apologétique de la Foi Chrétienne, « Incinération », Beauchesne éditeurs, Paris 1911).
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A ânsia de reformas por ocasião do Concílio Vaticano II levou o Santo Ofício a promulgar, em 5 de julho de 1963, a Instrução “Piam et Constantem”, abrindo-se a possibilidade de cremação. “A cremação não afeta a alma nem impede a Deus onipotente de restaurar o corpo, nem significa em si mesma uma negação objetiva dos dogmas mencionados. […] Havendo motivos justos, baseados em razões sérias, particularmente de ordem pública, a Igreja não objetava nem objeta contra esta prática”. Não é fácil perceber como esta Instrução não contradiga as palavras de São Paulo acima citadas: “E não vos conformeis com este século…”
A Igreja estabeleceu 2 de novembro como o “Dia dos Mortos”. Nessa data, em quase toda a Cristandade os cemitérios se enchem de visitantes. Sobre túmulos dos antepassados fotos perpetuam suas fisionomias queridas ao lado de imagens de santos e anjos a velar sobre o morto.
Em oposição a este hábito imemorial, o respeito devotado aos mortos fica obnubilado pela ausência das cerimônias: pequenas urnas contendo restos incinerados são guardadas “estocadas” em prateleiras. Vendo-as sente-se, erroneamente, que tudo terminou nesta terra. A ideia da vida após a morte fica obscurecida. Fenece também assim o sentimento tão humano e natural de apreço pelos mortos.
No Dia de Finados, parentes e amigos levam flores e velas às sepulturas de seus entes queridos; Missas são celebradas e Rosários rezados pelas almas dos fiéis defuntos. Esta é a assistência poderosa e materna da Igreja em sufrágio das almas que gemem no Lugar da Purificação. A Igreja Militante pede a Deus junto aos sepulcros que as almas do Purgatório possam logo subir aos Céus, para integrar a Igreja Triunfante e assim contemplar a Deus face a face.
“Livrai, ó Senhor, as almas dos fiéis defuntos de todo vínculo da culpa”, canta a liturgia dos mortos. Reza-se também em louvor daqueles que já estão no Céu, pedindo sua intercessão pela santificação dos que ainda estão na dura contenda desta Terra. Já no século XI, Santo Odilon, abade de Cluny, prescreveu para seus monges a celebração de Missas pelos defuntos no dia 2 de novembro. Em Roma encontram-se antigas referências a esta comemoração no século XIV. (“Missa pelos Defuntos”, Das Römische Meßbuch, A. Schott O.S.B.).
A comemoração de Finados em Cracóvia recebe da índole profundamente católica do povo polonês sua nota de dolente elevação. Intenso é o concurso da população aos cemitérios. Novembro, já em meados do outono europeu, antes do fim da tarde a noite baixa sobre a cidade junto com fina garoa. O campo santo ficaria imerso em inteira escuridão se não fossem os milhares de lâmpadas votivas, vermelhas em sua maioria, piedosamente trazidas aos mortos por familiares. Contritos, eles se movem como sombras entre túmulos e mausoléus portando esses lúmines incandescentes com o cuidado de ceroferários.
Nas sepulturas, feitas as preces em família, as pequenas tochas cintilam na noite como constelações de chamas em vigília de orações. São as orações dos vivos por aqueles que passaram à Eternidade. Gotas de garoa caindo sobre as lâmpadas evolam-se imediatamente, e num cicio, como pequenas nuvens de vapor, sobem ao alto fazendo imaginar as almas que partiram deste mundo.
Por vezes murmuram uns aos outros. Crianças indagam sobre os antepassados. De mãos postas imitam os pais em oração e emoção. No limiar da vida a inocência se compraz com o mistério do além. Estreitam-se quietas junto aos pais, parecendo assim estreitar-se à vida.
Somente a Igreja pode harmonizar docemente sentimentos tão opostos: o tempo e a eternidade; a morte como semente de vida eterna. Daquele cenário, tal como a garoa ao pousar sobre as lâmpadas ardentes, evaporam-se tristeza e compenetração cheias de esperança e resignação. Aquelas sombras movendo-se no Tempo procuram o invisível na Eternidade e desse encontro evola-se uma afirmação da Fé.
Tivesse Cracóvia generalizado a cremação, reduzindo seus cemitérios ao vazio dos “jardins da lembrança” — sem túmulos ornamentais nem jazigos ou monumentos funerários —, seus fiéis não mais teriam no Dia de Finados aqueles momentos de reflexão religiosa. A cremação, abolindo aos poucos sepulturas e cemitérios, deseja principalmente banir a Religião dos ritos mortuários e o sufrágio dos antepassados que “nos precederam com o sinal da Fé”.
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 799, Julho/2017.
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