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10 min — há 4 anos — Atualizado em: 4/9/2021, 4:17:59 PM
Sua Eminência trata a respeito da recepção da Sagrada Comunhão por aqueles que persistem em pecado público grave
Muitos católicos — e também não-católicos, que apesar de não professarem a fé católica respeitam a Igreja Católica pelos seus ensinamentos sobre a fé e a moral — perguntaram-me como é possível aos católicos receber a Sagrada Comunhão enquanto promovem pública e obstinadamente programas, políticas e legislação que estão em direta violação da lei moral. Em particular, perguntam como é que políticos e funcionários civis católicos que defendem e promovem pública e obstinadamente a prática do aborto procurado, podem se aproximar para receber a Sagrada Comunhão. A sua pergunta aplica-se claramente também aos católicos que promovem publicamente políticas e leis atentatórias à dignidade da vida humana daqueles que sofrem doenças graves, necessidades especiais ou idade avançada, e que violam a integridade da sexualidade humana, do matrimônio e da família, ou a livre prática da religião.
A questão merece uma resposta, especialmente porque tange os próprios fundamentos do ensinamento da Igreja a respeito da fé e da moral. Acima de tudo, diz respeito à Sagrada Eucaristia, “[o] Sacramento da Caridade […] a doação que Jesus Cristo faz de Si mesmo, revelando-nos o amor infinito de Deus por cada homem. […] Jesus continua a amar-nos ‘até ao fim’, até ao dom do seu corpo e do seu sangue”[1].
Espero que os seguintes pontos do ensinamento da Igreja possam ser úteis àqueles que estão justamente confusos e, na verdade, frequentemente escandalizados por esta traição pública bastante comum do ensinamento da Igreja sobre a fé e a moral por aqueles que professam ser católicos. Vou abordar a questão do aborto procurado, mas os mesmos pontos se aplicam a outras violações da lei moral.
1. Quanto à Sagrada Eucaristia, a Igreja sempre acreditou e ensinou que a Sagrada Hóstia é o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo, o Filho de Deus Encarnado. A fé da Igreja é assim expressa pelo Concílio de Trento: “Porque Cristo nosso Redentor disse que era verdadeiramente o seu Corpo que Ele oferecia sob as espécies de pão [cf. Mt 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24-26], sempre foi a convicção da Igreja de Deus, e este santo concílio agora declara novamente, que, pela consagração do pão e do vinho, ocorre uma mudança de toda a substância do pão na substância do Corpo de Cristo nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância do seu Sangue” (Sessão 13, Capítulo 4)[2]. Portanto, como ensina claramente São Paulo na sua Primeira Carta aos Coríntios: “Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor” (1 Cor 11, 27).
2. A recepção da Sagrada Comunhão por aqueles que violam pública e obstinadamente a lei moral nos seus mais fundamentais preceitos é uma forma de sacrilégio particularmente grave. Nas palavras do Catecismo da Igreja Católica, “o sacrilégio é um pecado grave, sobretudo quando é cometido contra a Eucaristia, pois que, neste sacramento, é o próprio corpo de Cristo que Se nos torna presente substancialmente” (n. 2120). Não só faz merecer o castigo eterno a quem recebe indignamente, mas constitui um escândalo gravíssimo para os outros, isto é, leva-os à falsa crença de que se pode violar, pública e obstinadamente, a lei moral em matéria grave e receber, ainda assim, Nosso Senhor na Sagrada Comunhão. Uma pessoa razoável, diante de tal situação, tem de concluir que ou a Sagrada Hóstia não é o Corpo de Cristo ou que a promoção do aborto procurado, por exemplo, não é um pecado grave.
3. O cân. 915 do Código de Direito Canónico, que repete o ensinamento perene e imutável da Igreja, dispõe: “Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.”[3] A negação da Sagrada Comunhão não é uma pena eclesiástica, mas o reconhecimento do estado objetivamente indigno de uma pessoa para se aproximar a fim de receber a Sagrada Comunhão. A disciplina contida no cân. 915 salvaguarda a santidade da realidade mais sagrada na Igreja, a Sagrada Eucaristia, impede a pessoa que persevera obstinadamente em pecado grave de cometer o pecado adicional e gravíssimo de sacrilégio, profanando o Corpo de Cristo, e impede o escândalo inevitável que resulta da recepção indigna da Sagrada Comunhão.
4. Os sacerdotes e os Bispos têm o dever de instruir e admoestar os fiéis que se encontram nas condições descritas no cân. 915, para evitar que se aproximem para receber a Sagrada Comunhão e venham assim a cometer esse gravíssimo sacrilégio, o que resultaria no seu próprio dano eterno e, a par disso, em levar outros ao erro e, até mesmo, ao pecado em assunto de tamanha seriedade. Se uma pessoa foi admoestada e, ainda assim, persevera em grave pecado público, não pode ser admitida para receber a Sagrada Comunhão.
5. Claramente, nenhum sacerdote ou Bispo pode conceder permissão para receber a Sagrada Comunhão a uma pessoa que está em pecado grave público e obstinado. Tampouco se trata de uma discussão entre o sacerdote ou Bispo e aquele que comete o pecado, mas sim de uma questão de admoestação sobre verdades de fé e de moral por parte do sacerdote ou do Bispo, e de uma questão de reforma de uma consciência errônea por parte do pecador.
6. O Papa João Paulo II apresentou o ensinamento constante da Igreja sobre o aborto procurado na sua Carta Encíclica Evangelium Vitæ. Referindo-se à consulta dos Bispos da Igreja universal sobre o assunto na sua carta do Pentecostes de 1991, declarou: “Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — ‘declaro que o aborto direto, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave’, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente.”[4] Deixou também claro que o seu ensinamento “está fundado sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitido pela Tradição da Igreja e ensinado pelo Magistério ordinário e universal”[5].
7. Às vezes, argumenta-se que um político católico pode acreditar pessoalmente na imoralidade do aborto, ao mesmo tempo em que defende uma política pública que prevê o chamado aborto “legalizado”. Esse foi o caso, por exemplo, nos Estados Unidos da América, do encontro que reuniu certos teólogos morais católicos, que adotaram a errônea teoria moral do proporcionalismo ou consequencialismo, e políticos católicos, realizado no complexo da Família Kennedy, em Hyannisport, Massachusetts, no Verão de 1964[6]. O Papa João Paulo II responde claramente a esse pensamento moral erróneo em Evangelium Vitæ: “Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um ato que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.”[7] Na sua Carta Encíclica Splendor Veritatis, o Papa João Paulo II corrige o erro fundamental do proporcionalismo e do consequencialismo[8].
8. Diz-se por vezes que a negação da Sagrada Comunhão aos políticos que perseveram obstinadamente em pecado grave é o uso da Sagrada Comunhão pela Igreja para fins políticos. Pelo contrário, é solene responsabilidade da Igreja salvaguardar a santidade da Sagrada Eucaristia, tanto para evitar que os fiéis cometam sacrilégio quanto para não haver escândalo entre os fiéis e outras pessoas de boa vontade.
9. Na verdade, quem usa a Sagrada Eucaristia para fins políticos é o político católico que promove pública e obstinadamenteo que é contrário à lei moral e ainda ousa receber sacrilegamente a Sagrada Comunhão. Por outras palavras, o político apresenta-se a si mesmo como um católico devoto, ao passo que a verdade, afinal, é completamente diferente.
10. Além da negação da Sagrada Comunhão a pessoas que violam pública e obstinadamente a lei moral, há também a questão da imposição ou declaração de uma justa pena eclesiástica para chamar a pessoa à conversão e reparar o escândalo que as suas ações causam.
11. Aqueles que violam pública e obstinadamente a lei moral se encontram pelo menos em estado de apostasia, isto é, abandonaram efetivamente a fé pela recusa obstinada, na prática, de viver de acordo com as verdades fundamentais da fé e da moral (cf. cân. 751). Um apóstata da fé incorre automaticamente na pena de excomunhão (cf. cân. 1364). O Bispo de tal pessoa deve verificar as condições para a declaração da pena de excomunhão em que se incorreu automaticamente.
12. Também podem ser heréticos se obstinadamente negarem ou duvidarem da verdade sobre o mal intrínseco do aborto, visto que nisso “se deve crer com fé divina e católica” (cân. 751)[9]. A heresia, como a apostasia, leva a que se incorra automaticamente na pena de excomunhão (cf. cân. 1364). Também no caso de heresia, o Bispo deve verificar as condições para a declaração da pena de excomunhão em que se incorreu automaticamente.
Em suma, a disciplina da Igreja, começando com o Apóstolo Paulo, ensinou consistentemente qual é a necessária disposição da consciência para a recepção da Sagrada Comunhão. O não cumprimento da disciplina resulta na profanação da mais sagrada realidade na Igreja — o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Cristo —, constitui o gravíssimo pecado de sacrilégio e causa um gravíssimo escândalo, pela falta de testemunho em relação à verdade da Sagrada Comunhão e à verdade em matéria moral, por exemplo, no que tange à inviolável dignidade da vida humana, à integridade do matrimônio e da família, e à liberdade de adorar a Deus “em espírito e verdade”[10].
A resposta à questão que me tem sido colocada tão frequentemente é clara: um católico que se opõe pública e obstinadamente à verdade em matéria de fé e de moral não pode se apresentar para receber a Sagrada Comunhão, e nem o ministro da Sagrada Comunhão pode lhe dar o Sacramento.
Raymond Leo Cardeal BURKE
Roma, 7 de abril de 2021
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[1] “Sacramentum caritatis, … donum est Iesu Christi se ipsum tradentis, qui Dei infinitum nobis patefacit in singulos homines amorem… Eodemquidem modo in eucharistico Sacramento Iesus «in finem», usquescilicet ad corpus sanguinemquetradendum, diligere nos pergit” — Benedictus PP. XVI, AdhortatioApostolicaPostsynodalis Sacramentum caritatis, “De Eucharistia vitæ missionisqueEcclesiæ fonte et culmine”, 22 Februarii 2007, Acta ApostolicæSedis 99 (2007) 105, n. 1. Tradução portuguesa: http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/apost_exhortations/documents/hf_ben-xvi_exh_20070222_sacramentum-caritatis.html.
[2] “Quoniam autem Christusredemptornoster corpus suum id, quod sub speciepanisofferebat [cf. Mt 26:26-29; Mc 14:22-25; Lc 22:19s; 1 Cor 11:24-26], vere esse dixit, ideopersuasumsemper in Ecclesia Dei fuit, idque nunc denuosanctahæcSynodusdeclarat: per consecrationempanis et viniconversionem fieri totiussubstantiæpanis in substantiamcorporis Christi Domininostri, et totiussubstantiævini in substantiam sanguinis eius”. Tradução portuguesa: http://agnusdei.50webs.com/trento.htm.
[3] “Can. 915: Ad sacramcommunionemneadmittanturexcommunicati et interdicti post irrogationemveldeclarationempoenæaliique in manifesto gravipeccatoobstinate perseverantes” – Código de Direito Canónico, trad. António Leite, S.J., 4.ª ed. (Braga: Editorial Apostolado da Oração, 2007), p. 165.
[4] “Auctoritateproinde utentes Nos a Christo Beato Petro eiusqueSuccessoribuscollata, consentientes cum Episcopisquiabortumcrebriusrespuerunt quique in superiusmemoratainterrogationelicet per orbemdisseminati una mente tamen de hacipsaconcinueruntdoctrina – declaramusabortumrecta via procuratum, siveuti finem intentum seu ut instrumentum, semper gravem præ se ferre ordinismoralisturbationem, quippequideliberataexsistatinnocentishominisoccisio” — IoannesPaulus PP. II, LitteræEncyclicæ Evangelium vitæ, “De vitæ humanæinviolabilibono”, 25 Martii 1995, Acta ApostolicæSedis 87 (1995) 472, n. 62. Tradução portuguesa: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031995_evangelium-vitae.html.
[5] “[…] naturaliinnititur lege Deiquescripto Verbo, transmittiturEcclesiæTraditioneatqueabordinarioetuniversaliMagisterioexponitur” – Evangelium vitæ, 472, n. 62.
[6] Cf. A. R. Jonsen, The Birth of Bioethics (New York: Oxford University Press, 1998), pp. 290-291.
[7] “Nequitexindeullacondicio, ulla finis, ulla lex in terrisumquamlicitumreddereactumsuaptenaturaillicitum, cum Dei Legiadversetur in cuiusquehominisinsculptæanimo, ab Eccesiaprædicatæ, quæpotestetiamrationeagnosci” – Evangelium vitæ, 472, n. 62.
[8] Cf. Ioannes Paulus PP. II, Litteræ Encyclicæ Veritatis splendor, De quibusdamquæstionibusfundamentalibusdoctrinæmoralisEcclesiæ, 6 Augusti 1993, Acta ApostolicæSedis 85 (1993) 1192-1197, nn. 74-78. Tradução portuguesa: http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_06081993_veritatis-splendor.html.
[9] “Can 751: […] fide divina etcatholicacredendæ» – Código de Direito Canónico, trad. António Leite, S.J., 4.ª ed. (Braga: Editorial Apostolado da Oração, 2007), p. 138.
[10] Jo 4, 23-24.
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