Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
Erguido em uma pequena ilha em frente à costa da Normandia, suspenso entre a terra e o mar, o Mont-Saint-Michel, com sua abadia beneditina, incorporou a tensão religiosa do início da Idade Média. Suas profundas raízes espirituais foram preservadas até hoje, passando altaneiro pelo turbilhão de dez séculos de história.
13 min — há 1 ano — Atualizado em: 9/29/2023, 11:23:05 AM
Moint-Saint-Michel, França
Autor: Samuele Maniscalco
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 873, Setembro/2023
Mont-Saint-Michel, Normandia: há inegavelmente algo de prodigioso nesse lugar. Uma montanha que se transformou em uma ilha, mantendo o mistério de sua singularidade em um cenário fascinante, onde a terra e a água parecem interagir, alterando a conformação de um território em mutação, mas que resistiu aos desafios do homem e das forças da natureza por milênios.
Essa ilha-santuário é um dos lugares mais visitados de toda a Europa. Com um perímetro de 960 metros e uma extensão de sete hectares, a ilha se eleva 92 metros acima do mar. O ponto mais alto é a estátua de São Miguel, visível à distância do mar.
A origem desse extraordinário lugar sagrado remonta à visão que o Bispo de Avranches, Saint Aubert, teve do Arcanjo Miguel em 706.[1] Nesse canto da Normandia, o prelado foi convidado pelo mensageiro celestial a construir uma igreja no Monte Tombe.
A vida cotidiana de Saint Aubert era cheia de dificuldades, pois grande parte de sua diocese estava coberta pela vasta e densa floresta de Scissy, que só terminava no litoral, onde uma série de pequenos vilarejos se desenvolvia. Essa floresta impenetrável e perigosa era refúgio de um povo não muito devoto.
Saint Aubert suspeitava que os povos selvagens que viviam lá não abandonariam suas antigas práticas idólatras. Os cultos pagãos sobreviviam, concentrados principalmente em duas curiosas colinas que se elevavam acima das árvores — o Monte Dol e o Monte Tombe —, onde às vezes ainda eram acesas fogueiras em homenagem aos antigos deuses solares. Saint Aubert tentou remediar essa situação. Até encontrou alguns eremitas e monges dispostos a viver na floresta e nas encostas do Monte Tombe. Mas isso não foi suficiente para expulsar o demônio do paganismo.
Numa noite, Saint Aubert sonhou com o Arcanjo Miguel lhe dizendo:
Aubert, consagra-me o Monte Tombe. Quero que construas um santuário para mim como o da minha montanha em Gargano. Farei dele a minha morada.
Saint Aubert acordou profundamente perturbado, mas acima de tudo relutante. Ele era um homem de ação, não de sonhos místicos. Além disso, estava tão preocupado com a questão da floresta de Scissy e do Monte Tombe que atribuía ao seu sonho uma explicação natural: a impossível erradicação do paganismo que o assombrava mesmo durante o sono. Em nenhum momento considerava que seus pensamentos sobre a consagração da montanha a São Miguel poderiam ter vindo do Céu….
Os dias se passaram e o bispo tentava não pensar duas vezes no sonho. Já estava quase esquecido dele quando, em uma noite, o mesmo sonho reapareceu; só que dessa vez São Miguel encontrava-se visivelmente descontente e o repreendeu pela falta de zelo em atendê-lo.
Ao acordar, o prelado, ainda mais perturbado do que da primeira vez, convenceu-se de que era vítima tanto de orgulho doentio quanto de obsessão diabólica. Assim, continuou sem agir. Dias e semanas se passaram. Quando achou, por fim, que havia recuperado a serenidade, São Miguel lhe apareceu uma terceira vez. Desta feita muito carrancudo, repreendeu-o por sua incredulidade e anunciou que deixararia um sinal de sua visita. Em seguida, colocou seu dedo indicador na têmpora do prelado incrédulo. Este acordou de repente e, embora sem ferimentos visíveis, teve a sensação de que algo perfurara seu crânio. [2]
A demonstração foi suficiente: o bispo Aubert agora estava determinado a dar plena satisfação ao grande Arcanjo. Começou imediatamente a trabalhar na limpeza e nas fundações da igreja, que pretendia construir da mesma forma que a basílica de Gargano, o primeiro santuário ocidental dedicado ao culto do Arcanjo. E para provar que uma construção dependia da outra, antes que a obra principal fosse concluída, enviou dois jovens monges a Siponto, na Itália, para pedirem ao bispo de lá uma parte das relíquias sagradas deixadas por São Miguel, a saber, uma pequena placa de mármore na qual o espírito celestial havia deixado suas pegadas, e um fragmento de um belo tecido roxo, muito semelhante ao manto de um oficial da cavalaria romana.
Os monges iniciaram sua peregrinação, que levaria mais de dois anos para ser concluída. O bispo de Siponto demonstrou compreensão e honra, aquiescendo na entrega de algumas relíquias. Se os frades tinham dúvidas sobre a origem delas, os milagres realizados ao longo da rota de retorno os tranquilizaram. Doentes eram curados milagrosamente! Eles não viam a hora de chegar ao Monte Tombe para informar Saint Aubert de seu sucesso. Já estavam perto, mas pararam de repente, atônitos, petrificados: não reconheciam mais nada. Apesar da certeza de que voltaram para casa, não conseguiam encontrar a paisagem que lhes era familiar.
A imensa floresta de Scissy desaparecera; os pequenos vilarejos costeiros deram lugar a um penhasco íngreme e nu e a uma vasta extensão de areia branca, exposta pela maré baixa e atravessada por riachos que a faziam brilhar ao sol. Ao longe, no mar, numa pequena ilha exposta ao ataque das ondas, erguia-se o Monte Tombe, sobrevivente de um desastre que os dois monges peregrinos, atônitos, não ousavam imaginar.
Quando os religiosos se juntaram aos dois monges que retornavam de sua missão, lhes contaram sobre o cataclismo que havia ocorrido seis meses antes, responsável por essas mudanças extraordinárias. Era março de 709. [3] Numa noite escura e tempestuosa, a chuva caía torrencialmente e nada podia ser visto a um passo de distância. De repente ouviu-se, emergido das profundezas da terra, o rugido de um terremoto, e o Monte Tombe balançou sobre os seus alicerces.
Parecia o fim do mundo. Os monges e o bispo agarraram-se ao altar, certos de que sua última hora havia chegado. E, horrorizados, contemplaram centenas de animais selvagens — lobos, cobras, gaviões-pardais — invadirem a montanha, buscando refúgio. A costa se afundara no mar, a linha costeira descera abaixo do nível do oceano, e a maré, a grande maré do equinócio da primavera, inundara o que havia sido o continente. A floresta de Scissy ficara submersa, e os monges viram árvores arrancadas sendo carregadas como galhos pela correnteza.
Toda essa demonstração de poder dos elementos parecia ter apenas um alvo: o Monte Tombe. Chuva, mar, raios e terremotos convergiram para a ilhota poupada, determinados a engoli-la. Saint Aubert entendeu. Ao dedicar o monte a São Miguel, ele desencadeara a ira implacável de Lúcifer. Invocou, então, a ajuda do Arcanjo. Ela veio imediatamente. A tempestade se acalmou, o mar recuou; a montanha flutuou como a Arca de Noé, em uma paisagem apocalíptica.
O Monte Tombe começou então a ser chamado de Mont-Saint-Michel — Monte São Miguel. Sua notoriedade foi imediata. Em 710, o rei Gildebert III, da dinastia merovíngia, consagrou seu reino a ele.
Quando Saint Aubert morreu, as relíquias de São Miguel permaneceram com os cônegos incumbidos pelo santo bispo de zelar pelo local, os quais tinham por missão rezar o Ofício Divino e receber os peregrinos. Mas, alheios à austeridade da época da fundação, eles foram motivo de escândalo. O duque da Normandia, Ricardo I, pôs fim a esses abusos trazendo para o santuário monges beneditinos da abadia de Saint-Bedrille. Sob o comando do abade Maynard, foi iniciada a construção da igreja românica de duas naves de Notre-Dame-sous-Terre. Parcialmente destruída por um incêndio em 992, sobre ela se ergueu a atual abadia românica, iniciada em 1017 sob a direção do arquiteto Ranulphe de Bayeux e concluída, exatamente há mil anos, em 1023.
Incêndios e reconstruções subsequentes deram à igreja da abadia um estilo original, que combina harmoniosamente elementos arquitetônicos de diferentes períodos: a base data do século XI, os corredores são cobertos por uma abóbada construída um século depois, enquanto o coro e a torre pertencem ao período gótico tardio.
Entre 1154 e 1186 a abadia viveu uma época de ouro, sob a liderança do abade Robert de Torigny. Sábio e erudito, ele foi capaz de despertar entre seus irmãos o amor pelas letras e, em particular, pela arte da iluminação. Também realizou extensas reformas arquitetônicas, modificando a entrada da igreja a fim de obter maior isolamento entre os monges e os já numerosos peregrinos. Com vistas a dotar sua obra de certa grandiosidade, construiu duas torres em frente à fachada da igreja, unidas por um amplo pórtico.
Em uma nova reconstrução, dirigida pelo abade Jourdain entre 1203 e 1228, foi erguida a chamada “Maravilha”, a parte gótica da abadia. Ela consiste em duas alas, uma oriental e outra ocidental, ambas sustentadas por poderosos contrafortes fundados na rocha, atingindo uma altura de 32 metros. A distribuição dos espaços internos é diferente: a ala oeste contém um dos mais belos claustros da França [quadro acima], a partir do qual se tem acesso à ala leste por uma galeria que conecta o claustro ao refeitório. A “Maravilha” é dividida em três andares sobrepostos: no inferior estão a capelania e os celeiros; no intermediário o quarto de hóspedes e o dos cavaleiros da Ordem de Saint-Michel — a antiga sala de trabalho dos monges —; e, finalmente, no superior, ao nível da igreja, o refeitório. Como em outros edifícios góticos do mesmo período, a luz é tratada como um elemento vivo, suscetível a mudanças.
Em 1316, durante a Guerra dos Cem Anos, os exércitos ingleses ocuparam Tombelaine, criando uma fortaleza que ameaçava a integridade do Mont-Saint-Michel, fiel à Coroa francesa. Após uma trégua de quase setenta anos, as hostilidades recomeçaram. Robert Jolivet se esforçou então em preparar a cidade para um estado de sítio, aumentando suas defesas e construindo uma imensa cisterna de água potável.
Acreditando que a causa francesa estava perdida, Jolivet aliou-se aos ingleses e se tornou amigo e conselheiro do rei da Inglaterra para a Normandia. Louis d’Estouteville tomou então as rédeas da situação, e por sete longos anos monges e cavaleiros resistiram ao cerco inglês. Em 10 de novembro, o coro da igreja desmoronou sob o fogo da artilharia inimiga. No entanto, em 1427, em uma operação bem-sucedida, d’Estouteville infligiu uma pesada derrota ao exército inglês. Duas bombas foram capturadas e ainda estão preservadas na abadia sob o nome de michelettes. Mas o intrépido defensor não se deixou embriagar pelo sucesso e acrescentou um novo elemento ao complexo de Châtelet: uma estrutura retangular com ameias que forçou os ingleses a se submeterem a seu fogo nas proximidades da cidadela. O ano de 1450 marcou o fim da Guerra dos Cem Anos e a libertação definitiva do Mont Saint-Michel.
No início do século XVII, o Cardeal de Béville decidiu introduzir uma reforma de São Maurício na abadia. Os novos monges abandonaram o dormitório e mudaram suas celas para o refeitório, dividindo o salão em dois e introduzindo alterações estruturais infelizes. Além disso, em 1780, a fachada românica, que ameaçava cair, foi demolida e substituída pelo modesto portal neoclássico que pode ser visto na plataforma oeste.
A Revolução Francesa pegou Saint-Michel em pleno declínio, fazendo-o objeto de saques durante os quais suas relíquias sagradas foram profanadas. Em 1791, os últimos monges foram expulsos da abadia, que se tornou uma prisão: mais de 300 padres que rejeitaram a constituição civil do clero foram presos lá a partir de 1793. Setenta anos depois, em 1863, a prisão foi fechada por decreto imperial, e a abadia finalmente devolvida ao culto, sendo ocupada pelos monges de Saint-Edme de Pontigny. Em seguida, começaram os trabalhos de reconstrução do Mont-Saint-Michel, que duraram até boa parte do século XX. A “cereja no chantilly” desses ingentes trabalhos foi a colocação, na agulha do Mont-Saint-Michel, de uma estátua dourada do Arcanjo, de quatro metros de altura. Aquela agulha é obra de Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879) — o genial arquiteto que projetou também a flecha da Catedral de Notre-Dame de Paris. Em 1966, uma pequena comunidade monástica beneditina se estabeleceu na abadia, substituída em 2001 pela Fraternidade Monástica de Jerusalém. [4]
O Mont-Saint-Michel é um local privilegiado de milagres. Desde 709, sob a orientação do Arcanjo, Saint Aubert fez jorrar da ponta de sua cruz uma fonte de água pura, essencial para a sobrevivência dos cônegos da ilhota. A fonte tem o poder de curar febres.
Em 1050 e 1263 os religiosos ouviram os serafins cantarem o Kyrie eleison, enquanto figuras de fogo giravam em torno do altar. Na sexta-feira, 3 de novembro de 1452, por volta das 21 horas, um raio explodiu, iniciou-se uma intensa tempestade de granizo e uma chama ardente se difundiu em faíscas ao redor do sino. O mosteiro inteiro foi iluminado. O fenômeno culminou meia hora depois com um raio ainda mais poderoso do que os outros.
O Monte também foi testemunha de um fenômeno surpreendente e misterioso, sem precedentes nos grandes santuários cristãos: grupos de crianças em procissões intermináveis cruzando a baía para venerar o Arcanjo. Eles apareceram pela primeira vez em 1333, pouco antes do início da Guerra dos Cem Anos. Por que trinta mil crianças, algumas delas com apenas nove anos de idade, faziam essa jornada? Alguns afirmaram que era a vontade de Deus, outros disseram que vozes os haviam ordenado a fazer a peregrinação. Elas partiram para lá de repente, às vezes sem avisar os pais, formando grupos que cresciam de vilarejo em vilarejo.
Crianças de várias regiões fizeram uma longa peregrinação de dois anos para o Monte de São Miguel na Normandia, liderada por estandartes representando São Miguel, deixando para trás suas famílias e, ao chegar, apresentaram seus estandartes ao Arcanjo.
O frade dominicano Pierre Herp relatou a partida de 1.100 crianças alemãs em julho de 1450. As Memórias de Colônia narram que, em 1455 "houve uma impressionante procissão para o Monte de São Miguel, na Normandia, uma peregrinação que durou cerca de dois anos e consistiu em crianças de oito, nove, dez e doze anos de idade, de vilas, cidades e aldeias da Alemanha, Bélgica e outras regiões. Elas se reuniam em grandes grupos, deixando os pais e as famílias para trás; a procissão era conduzida por faixas representando São Miguel… Esses pequenos peregrinos se comportaram dignamente e receberam comida e bebida ao longo do caminho. Quando chegaram ao Monte de São Miguel, apresentaram seus estandartes ao Arcanjo”.
A única coisa que posso dizer: incrível e magnífico!
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Notas:
Leonardo De Lima
31 de outubro de 202331/10/2023 às 20:18