Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
9 min — há 6 anos — Atualizado em: 5/11/2019, 10:51:32 PM
No tempo longínquo em que a reforma litúrgica imposta pelo Concílio Vaticano II encontrava adeptos ardentes, a celebração da Missa foi adquirindo um tom festivo, com canções novas e sermões otimistas exibidos em meio a representações cênicas deploráveis. Tudo sob medida para a Missa perder seu conteúdo de mistério.
Com um grupo de amigos da TFP francesa, íamos à Missa dominical em Notre Dame de Paris. Um velho cônego da Catedral, hostil à reforma pós-conciliar, celebrava a Missa de acordo com Ordo tradicio0al, que São Pio V estabelecera durante o Concílio de Trento, como forma de combate ao laicismo protestante. Disposições pós-conciliares relegaram o Ordo de São Pio V à categoria de cerimônia apenas tolerada, e a nossa Missa em Notre Dame tinha que ser celebrada às oito horas da manhã, “escondida” num altar lateral. Nessa hora quase não havia frequentadores ou visitantes da catedral, mas o que certos hierarcas temiam era a força da tradição.
Durante o inverno, a catedral fechada, ainda envolvida nas últimas sombras do alvorecer, parecia repousar. Tão imponente e majestosa, que preferíamos manter-nos em silêncio, mesmo estando do lado de fora, enquanto junto a ela aguardávamos que se abrissem as portas. Pontualmente às oito horas, dentro do santuário velhas aldravas e fechaduras rangiam, e o grande portal estremecia ao abrir-se apenas uma passagem de pequenas dimensões, existente na sua parte inferior.
Ao entrar, nossa primeira impressão agradável era sermos recebidos por uma espécie de “hálito da catedral”. Era o alento dos séculos, no qual se juntam o odor do incenso, a umidade das pedras, a fragrância de flores ressequidas, emanações enigmáticas de idades imemoriais. Odores da continuidade numa possante tradição, característicos dos edifícios seculares.
Ainda na obscuridade, a catedral nos apresentava então as suas vastidões e o seu silêncio. Uma floresta bem ordenada de colunas, traves e nervuras, onde nada se movia. Na imensidão do templo imerso em denso silêncio, presenças invisíveis se impunham aos sentidos, como a de anjos que habitam espaços sagrados. A amplitude das naves e a altura dos arcos góticos se dilatavam aos nossos olhos, pasmados ao perscrutarem as altas ogivas de um extremo a outro de sua extensão. A sacralidade daqueles espaços benditos nos atraía, tornando lento nosso caminhar para o altar distante onde nosso venerável Cônego celebraria. Grandeza e mistério envolviam os sentidos, criando um instante passageiro no qual a eternidade se fazia sentir.
Guerras e a inclemência dos tempos tinham destruído os vitrais junto à entrada. Substituídos por outros — monocromáticos, de tom esverdeado, inexpressivos — não tinham o esplendor dos painéis originais, cujas imagens narravam histórias santas em cores feéricas. Mas durante a Missa eu podia contemplar minúcias de grandezas: figuras da Natividade de Cristo, cujas faces de comoventes canduras se apresentavam como recém-saídas da mão do Criador; simples traços fisionômicos de personalidades acessíveis, revelando intenções firmes e fortes; figuras artísticas próprias à elevação e contemplação do mistério. A criatividade dos artistas e artesãos pôs naquelas feições disposições sobrenaturais, nas quais transluz a alma medieval. A penumbra da manhã encobria detalhes das imagens, mas nada tirava da beleza. A imaginação completava o que os olhos não discerniam, acrescentando-lhe traços sugeridos pela cândida inocência dos tempos idos e passados.
Ao fim da Missa, já o sol começava a acender os vitrais. Primeiramente os da abside voltada para o Levante, de onde veio a Luz do mundo, nosso Salvador. As cores são particularmente puras, pois vêm da Idade Média. No interior do templo, sobre quem os contempla, eles vertem luz, cores e prodígios. Mas na saída, ao contemplar a luz esverdeada dos vitrais monocromáticos, pensávamos numa “catedral submersa”, repousando no fundo de um oceano, à espera da fé de um povo que a resgatasse e a trouxesse à tona. E assim deixávamos Notre Dame e sua ternura materna, após a Missa tradicional dos domingos.
Do lado de fora, dávamos um último olhar à terna grandeza da catedral.
Olhando-a de longe, ela parece dominadora, a ponto de a cidade em torno desaparecer da atenção, obnubilada por sua grandeza. A fachada evoca uma fortaleza, onde as torres sobressaem como maciços torreões acastelados por contrafortes. São torres vigiando o mundo que se move a seus pés, e exprimem os olhos de Deus que tudo vê. Nelas se juntam à sua seriedade a Lei e os Profetas, evocando o Antigo e o Novo Testamento, ambos representados em esculturas da fachada.
Outras vezes, contemplando-a de longe, suas pedras adquirem cor mais clara, em alguns períodos do dia ficam mais rosadas. Sua acolhedora fisionomia ilude então nosso senso de observador, fazendo-a parecer pequena como a catedral de uma aldeia em miniatura, e a fachada parece procurar seus amigos com terno olhar, a todos ela parece ver. Mostrando-se meiga, a catedral desperta nos filhos de Deus a vontade de aproximar-se. Sua majestade nada tem de esmagador.
Entre as duas torres, a Mãe de Misericórdia tem seu Filho nos braços, abrandando todo rigor que os portentosos campanários tão oportunamente inspiram. Se a inflexibilidade das torres propõe um exame de consciência, junto a elas a rosácea central emoldura a imagem de Nossa Senhora, como um sorriso de perdão dado ao arrependimento. Maria nos diz que a severidade das torres se relaciona com os inimigos da Igreja, com os impenitentes e com o que pode haver de impenitência na alma de cada um. Mas Ela socorre os que a procuram com coração contrito.
Notre Dame nos observa e nos convida, exprime-se como uma fisionomia humana. Suavemente penetra nas almas, chamando-as à Religião. Esse chamado é como um sopro divino que abala o materialismo infiltrado nas almas, restaurando partes arruinadas pelos erros deste século. Quem a visita, nunca mais a esquece, fica na memória como o lugar deste mundo no qual as almas encontram refrigério. E retorna à lembrança, da mesma forma que a luz volta a iluminar seus vitrais, passada a escuridão da noite. Seu consolo se aloja na recordação indelevelmente. Não será esta sutil impressão um dos dons de Notre Dame, que atrai tantos visitantes?
O afeto filial torna mesmo imaginável tomá-la nos braços. Nisso ela se parece com a imagem central de sua fachada, representando Nossa Senhora com seu Divino Filho no colo. Transparece através de suas linhas e de seus adornos arquitetônicos o semblante da filha de São Joaquim e Sant’Ana — Notre Dame, ou Nossa Senhora — sendo apresentada no Templo de Jerusalém.
O fogo acaba de consumir uma parte significativa de Notre Dame. Estarrecidos, vimos a catástrofe que absolutamente não podia ocorrer: chamas vorazes, como que vindas do inferno, calcinavam aquele lugar celestial, trazendo à memória Santa Joana d’Arc, inocente e virginal, condenada ao suplício do fogo. Naquele instante — Joana d’Arc em sua agonia atroz, e a catedral em meio às chamas — davam de si uma figura mais santa do que nunca. Cresceram ambas na consideração de todos os homens. Sua beleza adquiriu assim um novo esplendor, iluminado pelas chamas do sacrifício. Assim é a beleza do martírio.
Cessado o fogo, as imagens de seu interior impiedosamente calcinado causam profunda dor. As cinzas do santuário baixam sobre nossos corações em luto. Mas se ela devesse um dia desaparecer, formaria na mente dos que a veneram uma figura mais bela ainda do que ela tem sido durante os quase nove séculos de sua esplendorosa existência. Notre Dame não desaparecerá, mas também não é admissível restaurá-la com outra fisionomia.
No dia seguinte ao incêndio, acerquei-me da catedral. Temeroso de vê-la em meio à desolação das cinzas, assim mesmo fui. Grande número de pessoas em torno dela, tanto quanto era possível, pois um cinturão de segurança a rodeava. Em pequenos e silenciosos agrupamentos, falava-se pouco e em voz baixa, nas mais diversas línguas. Católicos ou não, todas as faces mostravam consternação, olhares pesarosos como se tivessem perdido um familiar querido. O sentimento de orfandade vagueava entre todos, mesmo nos que não tinham explicitamente tomado Nossa Senhora por mãe. Grupos de jovens rezavam o Rosário, ajoelhados e contritos.
Esbarrei casualmente com a proprietária da lavanderia que me atende. Preocupada sempre com o esmero de seus trajes, a ostentação de seus enfeites e sua inserção no mundo, nunca pensei encontrá-la ali, onde não havia ambiente para futilidades. Cumprimentei-a passageiramente, quase sem fixá-la, mas ela me reteve. Notei então, pela primeira vez, traços de seriedade sob sua densa maquiagem: “Não pude conter as lágrimas, ao ver a transmissão ao vivo de Notre Dame em chamas”. Nunca imaginei que, sobre tantas camadas de cosméticos, algum dia pudessem correr lágrimas.
Havia nas pessoas, em particular nos jovens, um sentimento raro nos dias de hoje: a dor causada por uma razão elevada. Não era o sentimento pela perda do emprego ou pela derrota de seu time. Notre Dame sofrera essa tragédia no primeiro dia da Semana Santa, cujas cerimônias recordam o Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz. Numa dessas cerimônias recitam-se as Lamentações de Jeremias, sobre a desolação de Jerusalém castigada por Deus. Substituindo mentalmente a cidade de Jerusalém pela catedral de Notre Dame, podemos sentir ali “como está abandonada a cidade antes tão povoada! Aquela que foi grande entre todas as nações assemelha-se a uma viúva. […] Estão de luto os caminhos de Sião, e ninguém mais vem às suas festas”.
Aqueles jovens que rezam e o público lacrimoso encontrariam em Jeremias os termos consonantes com esta hora de dor.
Foi com horror e uma tristeza indizível que o mundo inteiro viu a Catedral de Notre Dame de Paris, joia da Cristandade, devorada pelas chamas, num momento em que uma vaga de profanações vandaliza os santuários franceses. No dia exato em que começava a Semana Santa, Notre Dame de Paris transformou-se em Nossa Senhora das Dores.
A coragem dos bombeiros permitiu salvar as torres e paredes, mas a flecha que apontava para o céu desabou dramaticamente. Como não ver nessa tragédia o símbolo do mal que corrói a França, outrora a pérola do mundo cristão? Um incêndio de impiedade devora o país, alimentado pela obsessão igualitária destruidora de tudo o que, por sua verticalidade, lembra o rumo do Céu.
Esse fogo propriamente infernal ergue-se por vezes, infelizmente, no próprio interior da Igreja, criando a ilusão de que ela vai desabar. Fluctuat nec mergitur (fustigada pelas ondas, ela não soçobra). Esta divisa da cidade de Paris aplica-se também com acerto à Roma eterna.
Por isso mesmo as ruínas de Notre-Dame não devem levar os católicos ao desespero. Ao contrário, assim como elas atraíram os fiéis, durante o incêndio, a se reunirem em massa para rezar nas margens do Sena, devem ser ocasião para nos voltarmos para Nossa Senhora e pedir forças para extinguir o mal que consome a França.
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O original deste comunicado da TFP francesa encontra-se disponível no site da entidade: http://tfp-france.org/notre-dame-de-paris-en-flammes/
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