Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
13 min — há 6 anos
Os seres minerais, não tendo sensibilidade, não têm nenhum conhecimento. A planta pode ter reações, mas não tem conhecimento. O animal tem um grau de vida superior ao da planta, e tem conhecimento. Por exemplo, quando um rato passa perto de um gato, este o reconhece como um alimento e corre atrás dele, pois precisa se alimentar. Também o rato reconhece o gato, sabe que o gato costuma ter fome, identifica-o como um perigo e foge. É natural que o gato e o rato, tendo ambos o instinto de conservação, queiram sobreviver, e o mais adequado a cada um é o gato comer e o rato fugir.
Essas reações naturais dos animais existem em seres irracionais, portanto não se devem a raciocínios, e sim ao conflito de instintos de conservação que ambos têm. Trata-se de um mundo de operações admiravelmente razoáveis que os animais possuem. Muitas vezes são operações de grande complexidade, cujo mecanismo os cientistas levam gerações estudando para explicar, e nem sempre o conseguem. Elas estão de acordo com a ordem e natureza das coisas, simplesmente por associações de imagens, reflexos, instintos, mas não são frutos de raciocínios.
Quando o gato dá um miado choroso, cujo tom lamuriante é infalível para comover corações femininos, é porque sabe que a sua dona pode dar-lhe um pouco de leite. Ele não faz um raciocínio como este: “Ela é dona do leite, e dá se quiser. Por isso, se eu quero leite, devo manifestar a ela que estou precisando de leite. Quanto mais lacrimejante for o meu miado, mais depressa ela vai dar. Logo, vou caprichar no meu miado”. Mas o gato é totalmente incapaz disso, o que faz é movido pelo instinto.
Não deixa de ser verdade que, quando ele tem fome, acaricia a dona, levado por um conjunto de instintos, reflexos, movimentos que decorrem do princípio vital dele, daquilo que nós poderíamos chamar “alma”. Não uma alma espiritual como a humana, mas um princípio vital do animal. Um mineral, como a pedra, não tem nenhuma vida e não é capaz de nada disso que se passa no mundo animal.
O homem é um ser muito mais complexo, possui uma razão que o leva a compreender as coisas, e tem todos os movimentos voluntários no nível da razão. O raciocínio funciona associado ao instinto, e muitas vezes o homem completa a ação do instinto pensando, raciocinando. Algumas coisas podem ser feitas automaticamente, por um reflexo, sem precisar de raciocínio, mas outras vezes é necessário um raciocínio. Pode-se mesmo não saber, num caso concreto, se agimos racionalmente ou apenas instintivamente. Nem sempre sabemos, em nossa ação, qual é o grau de colaboração da natureza animal e qual é a colaboração da alma racional.
Um exemplo é quando alguém entra depressa numa sala durante a noite, à procura de um objeto. Para isso, instintivamente estende a mão para o lado e acende a luz. O que se passou é uma mera associação de imagens e lembranças, e até um animal seria capaz disso. Poderá também ser resultado de um raciocínio: “Eu preciso de mais luz; para aumentar a luz, tenho que acionar este botão; portanto, vou acionar o botão”.
Por mais que o animal esteja abaixo do homem, há um ponto em que está acima dele: no animal não há uma luta interior, que ora o leva para um lado, ora para outro. Exemplo: uma das atitudes mais vis no reino animal, e por isso muito simbólica, é uma galinha quando foge espavorida. Ela pode hesitar, mudando várias vezes o seu rumo de corrida, pois de alguma forma o conhecimento dela indica que o perigo mudou de lugar, ou então ela primeiro viu o perigo de um jeito, depois viu de outro. Mas ela não tem uma divisão interna, uma incerteza, uma dúvida, obedece ao instinto.
Já o ser humano tem dúvidas. Em geral sentimos duas leis opostas. São Paulo chama isso “a lei da carne e a lei do espírito”. Queremos algo pela apetência carnal, mas pela apetência espiritual desejamos outra coisa. Há um combate interior, que nos leva a contradições, e às vezes fazemos uma coisa, depois mudamos e fazemos outra. O animal, nesse ponto, é superior ao homem.
* * *
Quando eu era pequeno, ia ao Jardim da Luz em São Paulo, onde havia um lago artificial com cisnes, e gostava de vê-los nadando. A maioria eram cisnes brancos, e um ou outro preto. Eu ficava encantado de ver a decisão suave, mas sem nenhuma forma de hesitação, com que um cisne tomava rumo na água, aparentemente sem motivo. Algumas vezes seguia em frente, outras vezes dava uma volta, nadava sem rumo aparente pelo meio do lago, mas nunca tontamente. Seguro de si, olhando o lago com aquele pescoção alto e a superioridade de cisne, flutuando como quem não se molha, mas regozijando-se do contato com a água.
Eu não conhecia ainda a doutrina do pecado original, e me perguntava: por que não sou assim? Por que não tenho essa segurança que tem o cisne, essa lisura no viver? Não seria melhor que eu tivesse nascido cisne?
Eu percebia que o cisne não tinha luta interior. Mesmo quando fazia alguma coisa sem razão aparente, a decisão era determinada por algo do seu instinto. Não havia luta interior, e durante muito tempo ele tornou-se para mim o próprio símbolo da falta de hesitação e da ausência de dúvida interior. Parecia haver um acordo implícito do cisne com as águas — elas nunca tentavam contra ele, nem ele contra elas. Deslizando sobre aquelas águas, ele parecia orná-las, e elas nunca se moviam de modo a contrariá-lo. O cisne ficava seco, com a toalete perfeita para o dia inteiro. Agradava-me enormemente contemplá-lo.
Essa divisão — ora querendo uma coisa, ora outra — nos joga tão baixo que parece representar uma vergonha. No entanto, isso nos coloca muito acima dos cisnes e dos outros animais, representa de fato uma vantagem. Nós somos capazes de nos conhecer a nós mesmos e de conhecer os outros. Somos capazes de conhecer o mundo externo. Nosso intelecto nos torna capazes de conhecer a Deus. Nós compreendemos. O simples fato de compreendermos a nossa alteridade — que cada um de nós é eu, e não o outro — o fato de cada um poder dizer “sou eu” é uma superioridade fabulosa. Somos inteligentes, conhecemos a Deus e o mundo externo, conhecemo-nos, sabemos quem somos. Também por isso o homem é o rei da criação. Um rei que cambaleia e que cai, se não abrir os olhos e se não rezar muito. Rei cego, mas que tem em sua fronte um diadema, uma coroa.
O que move o homem a agir nas várias situações? Move-o um modo de conhecimento animal que há em si, em face da realidade exterior. Exemplifico com as características deste nosso grupo de pessoas conhecidas. Meus olhos os veem, a todos e a cada um, e essa função de meus olhos é puramente animal. No entanto, a ela se somam imediatamente mil memórias, recordações sobre o nosso relacionamento anterior: as razões pelas quais estamos juntos; as metas que tenho, ao aceder em estar junto dos conhecidos; as facilidades e dificuldades que tenho na obtenção dessas metas. Portanto, levam-me a avaliar o que devo dizer e como devo dizer, para a obtenção dessas metas. Entra aí uma pirâmide de dados que foram intermediados pelo corpo e estão na inteligência, são armazenados na inteligência.
O corpo tem seu papel, e bem maior do que muitos imaginam. Se meu corpo fosse outro — se, por assim dizer, minha animalidade fosse outra — eu veria as pessoas como estou vendo, mas ressaltaria algumas coisas e outras não, reagiria de modo diferente em relação a umas coisas e outras. Portanto, o mesmo quadro que estou vendo agora, para mim teria relevos e cores diferentes. Cada homem é assim, à maneira de um tapete que, colocado junto à luz, toma reflexos variados. Nenhum homem tem, em face das coisas que vê, uma atitude inteiramente idêntica à de outro homem.
Embora sendo do mundo animal, devido às nossas inteligências nós somos capazes de julgar. Se algo não for conforme à Lei de Deus, conforme à verdade que minha inteligência percebe, sou capaz de reprimir o que é ruim e aceitar o que é bom, e até de desenvolver o que é bom. Portanto, minha alma continua a rainha, mesmo em águas convulsas. A batalha e a dificuldade são diferentes de uma pessoa para outra, e cada um pode também compreender a Deus de um modo ou de outro.
Voltando ao exemplo do gato. Volto de bom grado a ele, porque é um animal muito interessante, muito sugestivo e muito velhaco. E tem a vantagem de seus estados de animalidade serem muito matizados, ele muda continuamente en dégradé, sem saltos, como numa espécie de opala. Inspira também um certo medo, porque pode ter mudanças muito súbitas e muito variáveis.
Há gatos que são a própria imagem do raffinement. Sedosos, peludos, movem-se com elegância, fazem poses. Outros são a própria imagem do carinho, brinquedinhos vivos, que brincam de modo encantador. Gatinhos bebendo juntos de uma mesma tigela com leite, por exemplo, podem fazer coisas encantadoras.
Uma proeza felina que enraivece a dona, é quando ele consegue enfiar a pata pela porta da gaiola, agarra o passarinho e se banqueteia com uma refeição requintada. Cunharam até essa expressão bem achada, para a cara de fingido arrependimento quando alguém é apanhado em flagrante delito: cara de gato que comeu passarinho. Quem nunca viu a cena, pode facilmente imaginá-la.
Outra é a do gato que sobe no aquário e fica observando os movimentos do peixinho. Quando ele está numa posição conveniente, o gato mete rapidamente a pata e joga o nadador para fora da água, depois dá um salto felino e o apanha. Há em Paris uma Rue du Chat-qui-Pêche (Rua do gato que pesca) [foto abaixo], em memória de um gato que sobressaiu-se nessa habilidade no rio Sena, e era espetáculo gratuito para muitos, a ponto de merecer essa homenagem da municipalidade.
Por que Deus criou o gato com todas essas diversidades? Funcionaria igualmente bem o mundo, se não houvesse gatos? Evidentemente, Deus criou o gato para os homens, mas o que lucram os homens com a existência do gato? Ele distrai o homem, e também lhe serve de exemplo. Ora o encanta, ora o frustra. Por mais mansinho e apreciador de carinho, de repente lhe mete uma unhada.
O gato deixa no homem certo pesar de não existir o gato ideal: interessante como o gato ruim e encantador como o gato bom; vivo como o gato de goteira e sedoso como o gato criado sobre a almofada vermelha de uma marquesa; gatinho de brinquedo para distrair, mas nunca agredindo nem arranhando, nunca pregando má surpresa; capaz de arranhar e pregar má surpresa aos inimigos do homem, que são os ratos da casa. Na verdade o homem desejaria um gato duplo: tigrinho para o rato e brinquedinho para ele, pressupondo-se também a condição de não incluir peixinhos e passarinhos na sua dieta, nem derrubar louças frágeis.
Em todos esses estados de espírito que o contato com o gato proporciona, não estaria o homem sonhando com o Paraíso perdido? Não fica propenso a sentimentos de bondade? De outro lado, não fica propenso a sentimentos de prudência? E junto com a virtude da prudência, não exercita também a virtude da bondade, da caridade, da mansidão? Mais ainda a virtude da fortaleza, quando o gato atrapalha e o homem sai em sua perseguição? Não recebe do gato uma lição de vigilância, quando o vê levantar as orelhas e começar a olhá-lo? Nessa situação, o homem não se sente um bobo em face do gato? O reboliço que os gatos fazem dentro de um “saco de gatos” pode lembrar muito bem a consciência acusadora do pecador…
Essas mil lições que o gato proporciona ao homem simbolizam mil aspectos da realidade, com seu lado ruim decorrente do pecado original, mas com seu lado bom que tem fundamento em Deus. O sedoso e macio do gato simbolizam de algum modo as delícias do convívio divino. O interessante e o novo que há no gato simbolizam de algum modo o que há de inesgotável e sempre surpreendente para nós em Deus: sempre o mesmo, mas motor imóvel, causando todas as coisas e fazendo coisas que nos deixam continuamente surpresos, encantados e tranquilamente habituados a algo que não muda nunca. E assim, subindo até o mais alto ponto, elevamo-nos a Deus.
Comentários feitos por Plinio Corrêa de Oliveira durante um almoço no dia 7-7-1983, extraídos de gravação em fita magnética. A fim de serem publicados, alguns comentários foram ligeiramente adaptados. Essa transcrição não passou pela revisão do autor.
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 810, Junho/2018.
Plinio Corrêa de Oliveira
557 artigosHomem de fé, de pensamento, de luta e de ação, Plinio Corrêa de Oliveira (1908-1995) foi o fundador da TFP brasileira. Nele se inspiraram diversas organizações em dezenas de países, nos cinco continentes, principalmente as Associações em Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), que formam hoje a mais vasta rede de associações de inspiração católica dedicadas a combater o processo revolucionário que investe contra a Civilização Cristã. Ao longo de quase todo o século XX, Plinio Corrêa de Oliveira defendeu o Papado, a Igreja e o Ocidente Cristão contra os totalitarismos nazista e comunista, contra a influência deletéria do "american way of life", contra o processo de "autodemolição" da Igreja e tantas outras tentativas de destruição da Civilização Cristã. Considerado um dos maiores pensadores católicos da atualidade, foi descrito pelo renomado professor italiano Roberto de Mattei como o "Cruzado do Século XX".
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