Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
12 min — há 2 anos — Atualizado em: 4/2/2023, 8:07:08 PM
Pergunta— Gostaria de saber qual é a origem da ViaSacra que se reza nas igrejas durante a Semana Santa e por que em algumasestações são lembrados episódios que não figuram nos Evangelhos, como o daVerônica, o encontro de Jesus com sua Mãe e as três quedas de Jesus na Via Sacra.
Resposta— Segundoa tradição dos religiosos da Ordem Franciscana, guardiães dos Lugares Santos desde1342, Nossa Senhora teria sido a primeira a fazer o piedoso exercício depercorrer o caminho seguido por Nosso Senhor Jesus Cristo do pretório dePilatos até o Calvário e depois até o Sepulcro, rememorando os episódios daPaixão. De acordo com revelações da mística Soror Maria de Ágreda, a Mãe doSalvador teria percorrido esse trajeto, no sentido inverso, já na Sexta-FeiraSanta, depois de depositar o Corpo de seu Divino Filho no túmulo de José deArimateia e antes de se recolher no Cenáculo. Mas não há provas históricassustentando essa bela tradição.
Essa carência de documentação é tanto mais explicávelquanto poucos anos depois se desencadeou a primeira perseguição contra aemergente comunidade cristã, originando uma primeira dispersão daqueles quetinham visto os fatos em primeira mão. Algumas décadas mais tarde, como NossoSenhor havia profetizado, a cidade de Jerusalém foi destruída pelos romanos, emrepresália pela rebelião dos zelotes. Foi somente após o fim das hostilidadesque alguns sobreviventes retornaram à cidade e se pôde novamente restabeleceruma comunidade cristã, a qual provavelmente retomou discretamente as antigastradições, por tratar-se ainda de uma minoria mal vista.
Tradição de percorrer os Lugares Santos
Isso mudou com a ascensão de Constantino, convertidoao cristianismo, ao trono imperial, e de Teodósio, que elevou o cristianismo àcondição de religião oficial do Império. Houve então um bom número de cristãosque foi a Jerusalém por devoção ou estudo, como é o caso de São Jerônimo(350-420). Em uma de suas cartas, ele alude à presença de visitantes na cidadee insta seus correspondentes, Desidério e sua irmã Serenila, a não se atrasaremna visita “dos santos lugares”, pois “constitui uma parte da fé ter venerado olugar onde estiveram os pés do Senhor, e ter visto os vestígios de seu recentenascimento e da sua cruz e paixão” (Epistola 47 ad Desiderium: Patrologia Latina, XXII, 493).
Outro testemunho interessante é o de Silvia Etéria,que visitou Jerusalém a partir de meados do ano 381, quando era bispo SãoCirilo. Ela conta que, na Sexta-Feira Santa, antes de nascer o sol, os cristãosse reuniam no lugar em que Jesus fora flagelado, conforme outros tinhamrepetido. Levantava-se uma cruz, segurada pelo bispo e osculada por todos,enquanto se recitavam salmos e se liam as profecias e a Paixão segundo SãoJoão.
Esses exercícios piedosos dos primeiros cristãos na TerraSanta se viram dificultados ou até impedidos após a invasão muçulmana daPalestina em 637. Mas foram retomados com a vitória dos cruzados e, assim,vários viajantes que visitaram a Terra Santa nos séculos XII, XIII e XIV,mencionam uma Via Sacra (Caminho daCruz ou Via Crucis) — uma rotaestabelecida pela qual os peregrinos eram conduzidos pelos habitantes locais.Mas não há nada em seus relatos que identifique essa curta peregrinação peloslugares ligados com a Paixão de Nosso Senhor com a Via Sacra como a praticamos atualmente.
“Viagem espiritual” seguindo os passos de Jesus
Com o retorno desses peregrinos à Europa, aumentou nopovo a devoção pela Paixão. Para alimentá-la junto aos impossibilitados de iremà Terra Santa, começaram a ser construídas pequenas capelas contendo representaçõespintadas ou esculpidas dos principais episódios. Pode ter servido de inspiraçãopara essas coleções de capelas o fato de, já no século V, São Petrônio, bispode Bolonha, ter construído no mosteiro de Santo Estêvão um grupo de capelasconectadas representando os santuários mais importantes de Jerusalém.
Durante os séculos XV e XVI, várias reproduções doslugares sagrados foram montadas em diferentes partes da Europa. O Beato Álvarez(falecido em 1420), em seu retorno da Terra Santa, construiu uma série depequenas capelas no convento dominicano de Córdoba, nas quais, seguindo opadrão de capelas separadas, foram pintadas as principais cenas da Paixão. Maisou menos na mesma época, a Beata Eustóquia, religiosa clarissa, construiu emseu convento de Messina um conjunto semelhante de reproduções. Outrasinstalações semelhantes que se podem enumerar foram as de Görlitz, erguidas porvolta de 1465, e as de Nuremberg, em 1468.
O fato de as pessoas terem de percorrer sucessivamenteas cenas requeria delas o deslocamento de um lugar para outro, resultando naintrodução imperceptível do aspecto processional. Isso levava a intercalarmarchas, paradas, orações e cantos. O aspecto espiritual estava sendodesenvolvido paralelamente. Por exemplo, já no século XIV o Beato Henrique deSuso preconizava uma espécie de viagem espiritual (portanto, sem deslocamentofísico), por meio de uma série de meditações para recordar certos momentos doocorrido na Paixão.
Estímulos para incrementar a prática da Via Sacra
O uso mais antigo da palavra Estações (do latim stare, “estar ou permanecer de pé, fazendo uma parada ao longo do caminho”),aplicada aos costumeiros lugares de parada na Via Sacra em Jerusalém, ocorreu no relato de um peregrino inglês,William Wey, que visitou sucessivamente a Terra Santa em 1458 e em 1462, e quedescreveu como era usual seguir os passos de Cristo em Sua dolorosa jornada.
Dependendo do guia ou do relato (ou texto) seguido, aspropostas podiam ir de sete a 18 paradas, embora a mais habitual fosse de dozeestações. No início do século XVI, Jean van Paesschen foi o primeiro a falar de14 paradas ou estações, mas nem todas correspondem àquelas que conhecemos hoje.
O livro Jerusalemsicut Christi tempore floruit, escrito por Christiaan van Adrichem (†1585)ou Adrichomius e publicado em 1584, menciona 12 estações, as quais correspondemexatamente às 12 primeiras das nossas conhecidas Vias Sacras. Este fato leva alguns a concluir que essa é a origemda seleção autorizada posteriormente pela Igreja, sobretudo pelo fato de esse livroter tido uma ampla circulação, sendo traduzido para várias línguas europeias. Nãohá certeza se foi assim ou não, pois até então nada estava definido e cada um organizavaà sua maneira esses atos de piedade.
Houve uma evolução rumo a uma forma cada vez maiscomum, até se chegar a uma espécie de reformulação das variantes anteriores. Équase certo que tal unificação não ocorreu em Jerusalém, porque depois dadominação turca não era mais permitido percorrer a Via Sacra detendo-se nos lugares tradicionais e dando ali alguma demonstraçãoexterna de veneração. A unificação deve ter acontecido na Espanha, no decorrerdo século XVII, onde acabou tomando a forma em que a devoção chegou aos nossosdias.
A confirmação papal dessa prática de piedade veio naforma de indulgências, especialmente no século XVIII. Os franciscanos haviamsolicitado indulgências para estimular essa devoção nas suas igrejas. Em 1694,o Papa Inocêncio XII confirmou algumas dessas indulgências para os franciscanose os filiados à sua Ordem terceira. Um quarto de século depois, em 1726, BentoXIII estendeu os privilégios a todos os fiéis, ainda que não vinculados aosfranciscanos. Posteriormente, em 1731, Clemente XII alargou-a ainda mais,concedendo indulgências a todas as igrejas, com a condição de que as figuras ourepresentações que marcassem as estações no interior do templo fossem sempreabençoadas por um religioso franciscano com a aprovação do bispo. Taisindicações foram confirmadas e avaliadas por Bento XIV em 1742.
Esta decisão de impor certas condições — seja àsrepresentações, em madeira na forma de cruz, que podiam ser acompanhadas dequadros pintados ou esculpidos nos quais se apresentava a cena evocada, seja àsequência delas, localizadas a certa distância uma da outra, para poder-se beneficiardas indulgências estipuladas — foi o que fixou definitivamente em 14 o númerode estações, dispostas numa ordem precisa, desde a condenação de Jesus à morteaté o Sepultamento.
“Porque pela vossa santa Cruz remiste o mundo”
Desde então surgiram inúmeros livrinhos com umaresenha de cada Estação. O conteúdo de tais formulários era extremamentevariado: imprecações dolorosas, meditações, orações e até poesias. Muitos dosque foram impressos na Espanha incluíam a oração, seguida da jaculatória “Nós Vos adoramos, ó Cristo, e Vos bendizemos,porque pela vossa santa Cruz remiste o mundo”, datada do século XVI e recomendadaaos fiéis para o momento de entrarem na igreja ou de passarem diante de umacruz.*
No século XVIII, dois grandes santos, ambos italianos,promoveram a devoção da Via Sacra: São Leonardo de Porto Maurício (1676-1751),franciscano, que a difundiu em suas missões, sermões e folhetos de piedade, e SantoAfonso Maria de Ligório (1696-1787), seu contemporâneo, fundador dosRedentoristas, instituto religioso que propagou a prática do Caminho da Cruz sobretudo nas missõespopulares.
Com relação aos episódios da Paixão de que se compõe aatual série de Estações, cumpre notar que muito poucos relatos medievais fazemmenção à segunda (Jesus abraça a Cruz), ou à décima (Jesus é despido de suasvestes), enquanto outros, que foram abandonados (como o Ecce Homo, antes da condenação), aparecem em quase todas as suas listasiniciais, o que leva a confirmar a suposição de que nossas atuais estações sãoderivadas de manuais de devoção e não da prática da Via Sacra em Jerusalém.
As três quedas, não mencionadas nos Evangelhos, podemter derivado das representações feitas em Nuremberg, no fim do século XV. Consistiamem sete estações, popularmente conhecidas como “as sete quedas”, porque em cadauma delas Cristo era representado ora como realmente prostrado, ora caindo sobo peso da Cruz. Já seus imitadores colocaram Nosso Senhor em pé, nos encontroscom a Santíssima Virgem, a Verônica, o Simão de Cirene e as mulheres deJerusalém, e em apenas três cenas representam-No prostrado.
De qualquer forma, Christiaan van Adrichem(Adrichomius), que em seu já citado livro Jerusalemsicut Christi tempore floruit tentou uma reconstituição acadêmica da Via Crucis, incorporou as 12 primeiras estações atuais, incluindo as trêsquedas, no seu respectivo lugar. Seu livro foi traduzido em muitas línguas econtribuiu muito para divulgar a ViaSacra em toda a Igreja latina.
Devoção à relíquia do Véu de Verônica
Mais enigmático é o caso da Verônica. Segundo umaantiga tradição da Igreja, que não consta nos relatos evangélicos, uma mulherse comoveu ao ver Jesus carregando a cruz rumo ao Calvário e enxugou seu rostocom um véu, no qual ter-se-ia milagrosamente fixado sua imagem. A relíquiaresultante, conhecida como o Véu deVerônica, teria sido levada a Roma.
No reinado do Papa João VII (705-708) construiu-se naantiga Basílica de São Pedro uma capela chamada Verônica, e a primeira mençãoao véu data de 1011, com referência à nomeação de um guardião do tecido. Noséculo XIII, o Véu da Verônica passoua ser exibido, especialmente durante uma procissão anual entre a basílica e ovizinho hospital do Santo Espírito. Em 1300 Bonifácio VIII inaugurou umprimeiro jubileu da relíquia, a qual passou a figurar entre as mirabilia urbis (as maravilhas dacidade) para os peregrinos que visitavam Roma.
Depois do saque de Roma, em 1527, o precioso véudesapareceu. Na década de 1990, o sacerdote jesuíta Heinrich Pfeiffer levantoua hipótese de que se trata do mesmo véu venerado desde o século XVII numconvento capuchinho de Manoppello, o qual possui uma semelhança impressionantecom o rosto do Santo Sudário de Turim, só que em positivo, ao contrário desseúltimo. Porém, essa imagem não teria sidoimpressa durante o percurso de Nosso Senhor até o Calvário, mas tratar-se-ia dovéu visto por São João ao entrar no Sepulcro logo depois da Ressurreição.
Seja como for, a ligação do relato da Paixão com oaparecimento miraculoso do rosto de Cristo no Véu de Verônica foi feita pela primeira vez na Bíblia em francês deRoger d’Argenteuil, no século XIII, e ganhou popularidade após as Meditações sobre a Vida de Cristo, livroque ficou internacionalmente conhecido em torno do ano 1300, quando o retornodos cruzados havia popularizado a devoção pela Paixão e os primeiros embriões daVia Sacra.
O discípulo, com sua própria cruz, deve seguir oMestre
Para concluir, convém ter presente que a Via Sacra é fruto da piedade dos fiéis eda religiosidade popular, como a veneração das relíquias, as visitas aossantuários, as peregrinações e procissões, o rosário ou as medalhas religiosas.Eis o que diz a respeito o Diretório sobre piedade popular e liturgia,publicado pela Congregação para o Culto Divino em 2002:
“Entre osexercícios de piedade com que os fiéis veneram a Paixão do Senhor, poucos sãotão estimados como a Via Sacra. Por meio deste exercício de piedade, os fiéispercorrem, participando com seu afeto, o último trecho do caminho percorridopor Jesus durante sua vida terrena […].
“A ViaSacra é um caminho traçado pelo Espírito Santo, fogo divino que ardia no peitode Cristo (cf. Lc 12, 49-50) e o impelia ao Calvário; é um caminho amado pelaIgreja, que conservou a memória viva das palavras e dos acontecimentos dosúltimos dias de seu Esposo e Senhor.
“Váriasexpressões características da espiritualidade cristã confluem também noexercício da piedade na Via Crucis: a compreensão da vida como caminho ouperegrinação; como passagem, pelo mistério da Cruz, do exílio terrestre àpátria celeste; o desejo de se conformar profundamente à Paixão de Cristo; asexigências da sequela Christi, segundo a qual o discípulo deve caminharatrás do Mestre, carregando a sua própria cruz todos os dias” (cf. Lc 9, 23)”(n° 131 e 133).
O exercício da ViaSacra é particularmente adequado no tempo da Quaresma, mas convémpraticá-lo com frequência ao longo do ano, especialmente nas sextas-feiras,quando relembramos especialmente a Paixão do Senhor. E é particularmentefrutuoso quando os fiéis, ao percorrerem as estações, se unem às dores doCoração Imaculado de Maria e ao oferecimento que Ela fazia ao Pai Eterno dasafrontas feitas ao seu Divino Filho, pedindo pela conversão dos pecadores.
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*A segunda Via Sacra de autoria de Plinio Corrêa de Oliveira foi publicadaintegralmente na edição de Catolicismo de março de 1951. Seu texto encontra-seà disposição dos leitores no seguinte link:https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0003/P04-05.html
**Fotos das 14 estações da Via Sacra: Luis Dufaur.
*** Fonte : Revista Catolicismo, Nº 858, Junho/2022.
Padre David Francisquini
139 artigosPe. David exerce sua missão sacerdotal na Igreja do Imaculado Coração de Maria, em Cardoso Moreira (RJ). Entusiasta do livro Revolução e Contra-Revolução, do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, o Revmo. Pe. David sempre propagou os ideais deste insigne pensador e líder católico. Pe. David é autor de dois livros importantes para a defesa da família Brasileira: "Catecismo contra o Aborto" e "Homem e Mulher, Deus os criou".
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