Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
21 min — há 7 anos — Atualizado em: 9/1/2017, 8:46:30 PM
(C. P. Cearense)
As eleições realizadas nos últimos meses em importantes países revelam comportamento ideológico diferente entre a população das grandes cidades e do campo. O voto conservador foi dado sobretudo pelo campo. As grandes cidades elegem a esquerda.
Nos Estados Unidos, Donald Trump foi claramente derrotado nas grandes cidades como Miami, Detroit, Nova York, Cleveland. A vitória, entretanto, lhe foi assegurada pelas zonas rurais. Sua adversária, Hillary Clinton, de posições socialistas e particularmente antifamília, venceu largamente nas megalópoles modernas.
Meses antes das eleições norte-americanas, em junho 2016, o Reino Unido manifestava em plebiscito sua decisão de deixar a União Europeia. A UE, propulsora de um comunitarismo caótico e de um multiculturalismo igualitário, vem solapando afanosamente as raízes cristãs do Velho Continente. As esquerdas se rejubilam com este solapar. Os conservadores o lamentam. O mesmo fenômeno americano foi observado nas urnas britânicas: a capital inglesa e grandes cidades votaram pela permanência na UE. Mas o voto conservador do resto do país deu a vitória ao Brexit (abreviação alusiva à saída do Reino Unido da UE: “British exit”). Os súditos da Rainha Elisabeth II sempre prezaram o majestático isolamento insular e as tradições culturais caracteristicamente britânicas encimadas pela mais prestigiosa das coroas. Multiculturalismo? O solo britânico o rejeitou.
O campo é conservador. Ele é bem menos sujeito ao suceder ininterrupto de novas modas e novos estilos lançados nas grandes cidades, onde tudo corre velozmente, menos a reflexão. Difícil é pensar em meio à azáfama das imensas concentrações populacionais. Aturdido, o pensamento citadino, para convencer-se de que ainda existe, recorre às ideias feitas pela mídia, que verte sem parar torrentes de informações, fatos, notícias, cujos comentários uniformizam as opiniões. O campo, pelo contrário, com seus calmos estilos de vida, se prende ainda longamente à cultura tradicional e, de modo especial, à família, nas quais sobrevivem comportamentos outrora modelados pela influência cristã. É em família que o pensamento se aperfeiçoa e adquire autenticidade.
Na vida de campo fala-se menos, mas pensa-se mais. É onde se encontra hoje a “maioria silenciosa” das nações ocidentais. Silenciosa e conservadora, que não gosta de mudanças. Para que mudar, rumando sempre para reformas incertas? — argumenta essa maioria, desconfiada da mídia, desconfiada dos riscos trazidos por toda transformação. Desconfiada, portanto, do berreiro da esquerda, pois esquerda é sinônimo de agitação.
Sendo silenciosa tal maioria, ela não gosta, portanto, de quem berra e agita. Em nosso Brasil isto explica, por exemplo, a rejeição da população do campo ao MST, cujos crimes subsistiram nos últimos 25 anos devido unicamente ao aporte governamental milionário, passivo de ser investigado pela Lava Jato.
Uma consideração do Papa Pio XII, em alocução à Confederação dos Agricultores Italianos(29 de fevereiro de 1952).
“O homem do campo, mais refletido do que o homem da cidade, não se deixa nem levar por entusiasmos repentinos, nem se convencer por palavras sedutoras; calmamente, ele pondera onde está seu interesse, bem como o interesse alheio. Ele sabe que toda medalha tem dois lados, como lados também tudo o que é belo. Ele é lento ao tomar resoluções, pois só se convence ao apalpar por si mesmo a realidade, e inteiramente atento a tudo o que o cerca, prefere não estender demasiadamente seu campo visual nem se inteirar do que está além de seu meio. Ele é levado a cuidar bem de suas próprias necessidades e menos do bem comum e universal, vendo que, se as coisas vão mal para os outros, não tardarão também a ir mal também para ele” (Les enseignements pontificaux, Desclée & Cie, 1960).
No fim do ano passado, o então primeiro-ministro italiano Matteo Renzi [foto] convocou um plebiscito. Ele almejava reformar a Constituição, para reforçar o seu colorido já bem socialista. Renzi sofreu fragorosa derrota e demitiu-se. Por que os italianos não aprovaram sua reforma? Porque ele não se preocupou com a “maioria silenciosa”. As estatísticas pós-eleitorais mostram que o voto dessa maioria não proveio dos grandes centros metropolitanos (Beppe Servegnini, Cidade contra campo, “Corriere della Sera”, 25-11-16).
O jornal “Le Monde”, órgão oficioso do Partido Socialista Francês — o que torna insuspeito o comentário de cunho conservador que segue abaixo —, publicou em 24-11-2016 um artigo de O. Bobineau no qual este registra que a região “rural profunda” constitui o último polo de resistência de uma França católica e conservadora. “Esses eleitores certamente abandonaram suas paróquias, seus pais e avós. Contudo, não os esqueceram, e permanecem ligados a suas raízes”. Paróquia, pais, avós, isto é, a família em torno da Religião, a fixar no solo das mentalidades a tradição cristã. O eleitor parisiense, nota Bobineau, reflete sobretudo a mídia.
No Brasil, de há muito que observamos o mesmo. Em sua obra Reforma Agrária-Questão de Consciência (p. 16, 1962), Plinio Corrêa de Oliveira afirmou que a propriedade agrícola nascida espontaneamente das profundezas da ordem natural das coisas deu origem entre nós a gerações de agricultores. Em sua luta constante contra a natureza bravia do sertão essas famílias, ao mesmo tempo em que promoviam o seu bem-estar favoreciam, por uma profunda e natural entrosagem de interesses, o bem-estar das famílias dos trabalhadores. Esse estilo de vida é tão propício à prática da virtude. O livro cita o Papa Pio XII [foto], em discurso de 11 de abril de 1956: “Hoje, como no passado, o campo tem tanto a dar que ultrapassa o nível dos bens materiais: ele continua sendo sempre uma das reservas mais preciosas de energia física e espiritual”.
A “França profunda” é uma expressão repetida a partir do declínio do socialismo. É o modo de a mídia se referir àquela parte da população afeita a um estilo de existência vindo da família, da paisagem e do tempo. Acabamos de ver, pela distribuição territorial dos votos nas recentes eleições, que a “França profunda” não se encontra em Paris nem nas outras metrópoles. Ela se acha nas zonas rurais. A existência dessa opinião explica a referência acima ao “rural profundo”, afeiçoado ao modo de viver aprendido de seus maiores, ligado a suas tradições, sofrendo com seu desaparecimento, lamentando o abandono das terras e a fuga da mocidade para as grandes cidades. O “rural profundo” desconfia de novas reformas e de mudanças impostas pela administração burocrática parisiense, ou pela União Europeia. Todas elas oprimem seu doce estilo de vida e menosprezam sua mentalidade criativa. Sentem-se órfãos ao verem suas paróquias fechadas, as carências de vocações religiosas. Assim é a mentalidade conservadora do sertão longínquo. A reflexão chega com as eleições. E do sepulcro de um passado dito morto saem imagens evanescidas, mas amadas, e depositam um voto na urna. A esquerda chora. Não é o sol de uma nova era que ressurge com brilhar intenso, mas um luar suave clareando a desolação do atual campo político.
Segundo o livro O fim da vida rural (1870-1914), de Eugen Weber (Pluriel, 2010), essa mentalidade do homem do campo foi encarniçadamente combatida desde os dias trágicos da Revolução Francesa (1789). Laicista e anticatólica, ela combateu o campo mais do que a nobreza, perseguiu o lavrador mais do que o barão. A Revolução foi, sobretudo, parisiense. Suas ideias propulsoras (o Iluminismo e o Enciclopedismo) infectaram bem menos o homem do campo — que era a condição de dois terços da população francesa em 1789 —, para cujo habitat se impunha imperiosamente levar a ideologia revolucionária, se a Revolução quisesse impor-se ao país. Era preciso “colonizar o campo”, diziam os revolucionários em Paris. Pois, sem ele, o Iluminismo vagava nas cabeças da administração republicana como um esqueleto sem corpo. À página 16 de seu livro Utopia Igualitária, Adolpho Lindenberg exprime com exatidão a ideia que bem explica o programa então aplicado pelos revolucionários jacobinos para aniquilar a mentalidade conservadora do campo: “Após os ‘avanços’ da Revolução Francesa e a ‘limpeza’ que ela fizera com sua guilhotina, surgiria um mundo novo, emancipado, liberto das superioridades e sem amarras com o passado ‘feudal’”. A Revolução — prossegue Lindenberg à p. 24 — não podia tolerar que atitudes, hábitos e modos de ser se opusessem de uma ou de outra forma ao amplo esforço de transformar o mundo no oposto da Civilização Cristã.
Hábitos e instituições ancestrais uniam a população francesa à Igreja e à autoridade local. O vigário vinculava a todos em torno da liturgia; o castelão presidia os ritos civis. Era um universo austero e alegre, arcaico e estável. Pinturas e relatos do mundo rural anterior à Revolução suscitam hoje invejosas saudades da existência de outrora. Cada região tinha seu padroeiro, suas festas, seus modos de vestir. Músicas, vinhos, pães e queijos diferiam de paróquia a paróquia, segundo tradições próprias. Tudo se movia com lentidão, pois tudo tinha sido elaborado consuetudinariamente, século após século. A velha França vinha do fundo das idades. A Revolução, inversamente, se apresentava como uma factícia novidade. Ela se autoproclamava “una e indivisível”. Frívolo slogan. O esforço jacobino de conquistar os agricultores levaria anos. E até hoje não o conseguiu inteiramente. Subsiste o “rural profundo”.
O morticínio praticado pela Revolução (em nome da Fraternidade) aumentava ainda mais a distância que separava o homem do campo da Paris revolucionária. Privado de seus párocos e de seus castelões — expulsos ou guilhotinados —, o campo se intimidou e se isolou. Ele desconfiou dos emissários do governo, portadores de novos decretos e novas regulamentações, e os recebeu frequentemente a pedradas. Que regulamentações? Uma só lei (em nome da Igualdade), respondia o governo de Paris, imposta às mais diferentes províncias. Imensa era a diversidade de região para região. Como equiparar pescadores da Bretanha com os montanheses do Gevaudan? Aqueles lutando contra as intempéries para tirar do mar o seu sustento e estes ainda às voltas com matilhas de lobos negros? Como legiferar ao mesmo tempo para os habitantes das florestas de Vosges e os pastores das terras áridas do sul do Maciço Central?Uma nação se constitui lentamente, a partir de uma vontade comum, e sua unidade espiritual é organicamente formada através dos tempos. Sua conversão ao Cristianismo é episódio relevante para todas as nações europeias. Os Santos que as marcaram com suas obras e seus milagres, os reis e heróis cujos sacrifícios conservaram a sua integridade territorial, múltiplas vicissitudes históricas são autênticos fatores de consolidação do espírito de um povo. A Revolução não tinha nada disso. Era apenas uma ideia que impunha a ferro e a fogo uma ideologia. Atesta-o o período do Terror na França (1793-1794), erigido pelo governo revolucionário em sistema legítimo de liderança. Victor Hugo escreve que a Guerra da Vendeia foi entre uma ideia (Iluminismo) e uma concepção de vida ancestral. No centro dessa concepção — poderia ter acrescentado —, estavam o altar e o trono.
A República era verdadeiramente um espírito sem corpo. Ela abolira as seculares autoridades locais baseadas na fidalguia, no amor ao solo de onde brotara a raça, da identificação com a paisagem, com a fauna e a flora. A artificialidade republicana se chocava com a autenticidade popular, cujo senso comum era rejeitado pelos que traziam “novas teorias”. Era difícil converter o homem do campo num racionalista. Formaram-se na França duas nações. Duas nações conflitantes, uma das quais deveria ser aniquilada (em nome da Liberdade republicana).
Sendo anticatólica, a República se chocava com a influência da Igreja, que desde tempos imemoriais presidia os acontecimentos quotidianos: nascimento, casamento, funerais; curava nos hospitais, ensinava nas escolas e universidades, cuidava do bem-estar das famílias. A bênção dos campos, feita pela Igreja, era de grande solenidade. Em circunstâncias trágicas ou de glória, o povo fazia orações públicas rogando o afastamento de pestes, doenças, pragas, tempestades e raios. Rezava-se antes do trabalho e dos lazeres.
Em seu livro Tranquilizar e proteger (Fayard, 1989), Jean Delumeau, autor de várias obras sobre os hábitos quotidianos das populações europeias, dá a conhecer grande número de documentos, buscados em arquivos paroquiais, sobre orações e ritos protetores das populações quando ameaçadas pela peste, pela guerra, por inundações etc. A prática desses ritos era constante a partir do século XV. Ele revela a íntima relação do povo com o clero: “Os Santos teciam os dias do ano, davam o compasso do tempo, ditavam sábios conselhos aos trabalhos”. Eram bênçãos, orações, procissões, rosários, exorcismos, veneração de relíquias, apelo aos Anjos, tríduos dedicados aos Santos, devoção às almas do Purgatório, medalhas e imagens, retiros espirituais e confissões. O Inferno se afastava. O Céu ficava mais próximo de cada um. Séculos a fio, nunca uma civilização pôs tantos meios de proteção à disposição de todos.
São Bernardo (1090-1153), abade de Claraval, pregava certa vez na Abadia de Foigny, perto de Laon, a nordeste de Paris, quando moscas selvagens invadiram em grande número a igreja abacial, fazendo ensurdecedora zoeira. O grande pregador já não era mais ouvido pelos fiéis e não podia, assim, continuar o seu sermão. O povo se agitava, tentando afugentá-las. Inútil. A zoeira aumentava. O santo, percebendo tratar-se de uma trama do demônio, amaldiçoou as moscas. Todas caíram mortas, e em tão grande número, que foram retiradas da igreja com pás. Bernardo pôde assim continuar a pregar. Essa maldição se tornou legendária. Nos séculos posteriores ainda se falava dela. Entretanto, um grupo de estudiosos da doutrina da Igreja descobriu, na Suma Teológica de Santo Tomás (Segunda Parte, q. LXXVI, art. 2, t. III — “A Justiça”), um ensinamento que parecia impugnar a maldição lançada pelo grande abade de Claraval. “As moscas são também criaturas de Deus”. É preciso paciência com elas. É necessário julgá-las antes de condená-las. E assim foi feito. Estabeleceu-se um tribunal. Toda a população de Foigny compareceu. Qual o seu veredicto a respeito da ímpia zoeira das moscas? Em tudo semelhante ao veredicto do tribunal de Coire a respeito das larvas invasoras.
Em Coire, na Suíça oriental, próxima à fronteira da Áustria, larvas daninhas roíam as raízes das plantações, aniquilando as colheitas e começando a gerar fome na cidade. Os agricultores constituíram um tribunal, tendo sido nomeado um promotor público e um advogado para as larvas. O julgamento contou com todas as solenidades formais. Durante o processo, os advogados apuraram a existência de outras raízes, também elas apetecidas pelas larvas. Mas como se tratava de raízes não comestíveis, o juiz então decide enviar as larvas para o terreno dessas plantas. Mas como iriam elas para lá? Encabeçado pelo juiz, o povo fez procissões, “tres dies continuos sine interruptione”, cantando e portando círios, invocando o poder das Chaves, de nossa Santa Igreja Católica Apostólica Romana — “que as larvas cessem sua destruição sob pena da indignação da Majestade Divina e da eterna maldição”. Animava esses julgamentos o princípio segundo o qual “as coisas, em virtude do pecado original, caíram sob o poder do demônio”. As moscas e as larvas, no mal causado, eram visivelmente manobradas pelo demônio.
As fontes históricas comprovam que em inúmeras localidades francesas, antes do término dos três dias de procissão, larvas ou moscas se deslocavam frequentemente, em obediência à sentença do juiz. Entretanto, este as advertia de que se elas não saíssem da cidade sob sua ordem, ele chamaria a autoridade superior: o pároco. Se elas ainda assim não obedecessem, viria o bispo diocesano, que pronunciaria a maldição e o anátema. Os arquivos das cidades de Bourges, Evreux, Coutances, Besançon, Chartres, Bayeux, Chamonix, Paris, Beauvais, Orléans, Auch, entre outras, atestam tais juízos. Essas bênçãos e orações fazem parte do Ritual Romano, com edições em diferentes séculos. A existência desse tribunal se estendeu até o séc. XVIII, em toda a Europa.
No Brasil, o caso das formigas que esvaziavam os celeiros do convento dos Frades Menores da Província da Piedade, no Maranhão, no século XVIII, comprova o que acaba de ser dito. Este caso é narrado pelo grande escritor Pe. Manuel Bernardes, Nova Floresta (Lello & Irmão, Lisboa, 1949). Negras formigas, grandes e numerosas, abriram caminhos subterrâneos conduzindo até o celeiro dos bons franciscanos. Em sua pobreza, com poucos víveres, aproximavam de passar fome. Matá-las? A resolução não era simples, pois seu fundador, o grande São Francisco de Assis, as chamava de irmãs, junto com o irmão lobo, a irmã andorinha, o irmão sol. Levaram então as formigas a juízo. O Promotor do mosteiro acusou-as duramente: procediam como ladrões; tiravam o sustento de mendicantes; acabariam por expulsá-los daquela casa já inteiramente minada por seus inúmeros túneis; insetos demolidores… Contestou então o Procurador daquele “negro e miúdo povo”. E tão eloquente foi sua defesa, que a sentença, proibindo a morte, enviava as formigas para outra parte fora do mosteiro… Lançada a sentença, foi um dos religiosos, a mando do Juiz, intimar em nome do Criador aquele povo, em voz sensível, nas bocas dos formigueiros. Imediatamente, saíram a toda a pressa milhares e milhares daqueles animalejos, formando longas e grossas fileiras, deixando as antigas moradas indo para outro lugar. Livres de sua molestíssima opressão, aqueles santos religiosos renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência.
O Pe. Bernardes aproveita esse legendário caso para aumentar a nossa fé. Poderá alguém sorrir incredulamente dele e tachar de ignorância ou superstição o meio usado por aqueles religiosos, porque é certíssimo entre os teólogos que as criaturas irracionais são incapazes de censura eclesiástica.
Porém, responde-se facilmente que nem aqueles que pedem este modo de excomunhão, nem os que a fulminam, nem os que a ouvem ler ou contar ficam entendendo ser ela própria e rigorosamente uma censura eclesiástica. Trata-se somente de um arremedo de sentença ou de maldição imprecatória. E Deus muitas vezes se compraz em ouvir as súplicas dos miseráveis e aplicar-lhes os méritos dos santos e orações dos fiéis, para torna-los mais temerosos dos terríveis efeitos da excomunhão verdadeira e compenetrados da onipotência divina sobre todas as criaturas.
Nenhum desses ritos protetores das populações era mais solene do que a pomposa cerimônia da bênção dos sinos. Trazidos solenemente da fundição em carros de boi enfeitados, havia grande festa à sua chegada. Todo o povo os circundava dias a fio, enquanto o pároco, se não o bispo, se preparava para a cerimônia. Embora os sinos já tivessem sido objeto de dois exorcismos na fundição, outros ainda eram oficiados no dia de sua bênção. Rezavam-se orações, treze salmos, lia-se o Evangelho de São Lucas, ao mesmo tempo em que se lançavam sal, água benta, óleos santos, incenso, mirra, e algodões e sanguíneos enxugavam as unções. Terminada a bênção, os sinos — cujo som o povo estava ávido por ouvir, pois tinha o dom de tocar os corações e mover as vontades — eram elevados ao campanário.
Os sinos marcavam os momentos mais importantes da vida de todos: nascimentos, casamentos, festas litúrgicas e nacionais, funerais, catástrofes e guerras. Antes de tudo, seu som exorcizava os demônios dos ares e convidava os anjos a se juntarem aos fiéis; movia o coração das crianças para que assistissem às aulas de catecismo; tocava as almas em pecado, convidando-as ao arrependimento; aumentava a devoção dos adultos; dissipava ventos, tempestades e raios, espantava insetos daninhos às plantações. O timbre do bronze, bento pelo poder da Santa Igreja, no alto do campanário, conforta, acalma os ânimos, liberta das ansiedades, traz segurança aos que o ouvem, dá saudades de Deus. Certos sinos “eram bons para o granizo” que em certas estações são devastadores de casas e plantações. Outros, pelo contrário, atraíam chuvas nas épocas de estio. Em 1956, na cidade de Gers, na Gasconha, das 337 paróquias existentes, 143 ainda tocavam sinos à vista de tempestades e granizo. Aos poucos, sob a pressão do laicismo militante, os párocos abandonaram esse costume. Ia assim se reduzindo a antiga ordem cristã, na qual refletia o sobrenatural, e se fixava aos poucos o país no naturalismo. Em 1878, em Largentières, o sineiro se recusa a tocar os sinos, temendo os raios. Dois mendigos tomam o seu lugar, tocam-nos valentemente e a tempestade se desvia. Nas paróquias vizinhas, onde não se ouviram os carrilhões, casas foram atingidas e a colheita perdida.
No Ritual Romano de Bordeaux (1620) consta a oração da bênção dos sinos. “Fazei, Senhor, que este vaso preparado por vossa Igreja seja santificado pelo Espírito Santo, de tal modo que sua sonoridade convide os fiéis ao combate pelo Céu. Quando sua melodia ressoar no ouvido do povo, que sejam aumentadas nele a Fé e a devoção, que sejam reprimidas para longe todas as ciladas do Inimigo, o ruído do granizo, os turbilhões das borrascas, a impetuosidade das tempestades. Que os raios hostis sejam apascentados. Que o sopro do vento se torne salubre e suspensa sua violência. Que a força de vossa Destra aniquile as Potestades do ar e que estas, ao bimbalhar deste sino, sejam tomadas de terror e fujam diante do sinal da Cruz de vosso Filho traçada sobre ele. Esta Cruz diante da qual dobrará todo joelho no Céu, na Terra e no Inferno.”
Esses ritos e bênçãos teciam os dias do ano, protegiam, davam ânimo. Faziam parte do estilo de vida de então. Estilo que “nasceu de harmonias insondáveis, agia no subconsciente, despertava a imaginação e extasiava […] não provinha de disposições oficiais ou legais, mas era muito real e, na maioria das vezes, não decorria de urnas ou eleições, mas da própria natureza do relacionamento humano, na sua tessitura social”, escreve A. Lindenberg (op. cit., pp. 83 e 57). Tendo marcado profundamente a alma do povo, sua lembrança não se apagou por inteiro. Essa mentalidade não desapareceu. Ela se transformou, em parte. Foi comprimida por novas fórmulas. Integrou-se nos novos modelos revolucionários, com os quais convive em contradição. Houve uma mudança, sim, mas uma continuidade também. Em momentos decisivos da nacionalidade, a parte da mentalidade que continua ligada ao perfume dos campos e dos tempos aflora. Ao aflorar ela manifesta a vontade sobrevivente do “país profundo”.
Fonte: Revista Catolicismo, nº 800, Agosto/2017.
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