Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
4 min — há 8 anos — Atualizado em: 2/8/2018, 8:36:48 PM
Em 16 de novembro o Dicionário Oxford, publicação de enorme prestígio, divulgou a palavra do ano, pós-verdade (post–truth), utilizada 2000% mais vezes em 2016 que em 2015. Pós-verdade virou hit, vem sendo empregada nas mais diversas acepções. Em sua definição, o Dicionário Oxford destacou “fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública que apelos à emoção ou à crença pessoal”. Convém analisar seu significado mais interno, o que vou fazer pouco adiante.
“O uso da palavra aumentou muito em junho, com todo o frenesi do Brexit e das eleições nos Estados Unidos. Nos últimos tempos não houve sinais de que seu emprego venha a cair; não ficaria surpreendido se pós-verdade se tornasse uma das palavras que definem a nossa era”, observou Casper Grathwohl, presidente da Oxford Dictionaries.
Pós-verdade ser escolhida palavra do ano tem seu peso. Importa muito mais em ser considerada símbolo de nossa era. Na política, no Direito, na literatura, na economia, o mais importante na prática era o que mais impressionava. Acontecia o seguinte, contudo: a verdade e a objetividade ainda impressionavam muito. Hoje nem tanto, afirma a comissão escolhida pelo Dicionário Oxford, e muitos a acompanham na mesma opinião. Congruentemente, na hora de pensar, decidir e aderir, o peso da emoção, da fantasia, das ideias preconcebidas, das obsessões, até dos xodós e das birras subiu. A grande barreira contra o absurdo na vida privada e pública é a racionalidade. Enfraquecida, escancara-se a porta para todo tipo de loucuras.
Resumindo, a era da pós-verdade traz consigo — fato agora reconhecido e confessado — o definhamento da relevância da verdade e da objetividade na vida privada e pública. Não surpreende tornar-se cada vez mais comum o pouco interesse pela verdade e a importância crescente das emoções na vida privada e pública.
A promessa do iluminismo que embaiu multidões foi a de que a razão soberana iluminaria o mundo. A seguir disseminou-se no Ocidente o positivismo, espécie do gênero racionalista que reivindicou a importância do fato verificável pelos instrumentos da ciência experimental. Desvalorizou o restante do conhecimento humano. Também seduziu multidões sem-número ao longo das décadas. O mundo da pós-verdade vira as costas para o racionalismo e o positivismo. Anacrônicos, Descartes, Kant, Voltaire, Diderot, Comte. Durkheim e tantos outros deslizam rumo à irrelevância. A nova situação dá origem ao que nos Estados Unidos se chama de post-truth politics ou post-fact politics (política pós-verdade ou política pós-fato).
O fenômeno foi agravado pelas redes sociais. Com menos instrumentos de controle, ali existe espaço amplo para todo tipo de discurso e informações, mesmo os mais disparatados. Podem circular sem contestação eficaz enxurradas de inverdades, exageros, invenções. Barack Obama aludiu ao fenômeno ao tentar justificar a derrota de sua candidata. Para ele, Donald Trump sabe se mover no novo meio, “ecossistema em que fatos e a verdade não importam; você atrai a atenção, desperta emoções; você pode surfar essas emoções”.
Na era da pós-verdade, cada grupo tem seu conjunto de crenças, desinteressa-se do restante. Cresce a fragmentação social, generalizam-se as pessoas fechadas em pequenos círculos de interesses, ideológicos, sociais, econômicos. Em tal clima o debate se torna virtualmente inútil. Colin Crouch, cientista político inglês, cunhou o termo pós-democracia como realidade próxima e ameaçadora. Indica a situação em que formalmente existe a democracia, há eleições e mudanças de governo, mas não mais sua base, a contenda real de ideias. De forma análoga, a pós-verdade, ambiente largamente apático à verdade, nos arrastará à pós-democracia.
O processo tem raiz antiga nas paixões desordenadas e na falta de ascese intelectual. Ausente a temperança, abundam as paixões em tumulto, desorientam-se as inteligências vagabundas. Ninguém nega que sempre foi possível utilizar a mentira para influir os espíritos e governar as pessoas. Os exemplos aí estão aos milhões, no Brasil e no mundo todo. Da História, pinço dois. Luís XIV jamais afirmou: “L’État c’est moi” (O Estado sou eu). A frase falsa tem sido manejada com relativo êxito contra ele e o Antigo Regime. Maria Antonieta nunca observou: “S’ils n’ont pas de pain, qu’ils mangent de la brioche” (Se eles não têm pão, comam brioche). Vibradas contra ambos e contra as cortes em que viviam, elas e outras armas de difamação fizeram enorme estrago. O alarmante é o agravamento da apatia frente à verdade, reconhecido e confessado por corifeus da modernidade. Fatos e afirmações absurdas se tornaram mais fáceis de divulgar e têm potencialmente efeitos mais devastadores.
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Para finalizar, até mesmo a pós-verdade pode ter esse uso. Muita gente tem garantido que o triunfo do NÃO no plebiscito colombiano, a vitória do Brexit e o êxito de Trump só foram possíveis porque já vivemos num generalizado clima de pós-verdade. É a análise simplista e deformadora. Mas o espaço acabou; o tema fica para eventual artigo futuro.
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