Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
8 min — há 4 anos — Atualizado em: 9/25/2020, 5:59:07 AM
Ficou decidido que a catedral de Notre-Dame de Paris será restaurada como era antes do incêndio, mas opositores ainda agem para reverter a decisão
A fumaça ainda envolvia a catedral de Notre-Dame quando, em 17 de abril de 2019, o então primeiro-ministro francês Édouard Philippe prometia solenemente, no palácio presidencial do Élysée, um “concurso internacional de arquitetos”1 para refazer o telhado devorado pelas chamas e erigir uma nova flecha na catedral. Comunicou que o presidente Emmanuel Macron aspirava por um radical “gesto arquitetônico contemporâneo”,2 acenando para um referendo sobre as mudanças que “dariam à catedral características de nossa época”.
Aproveitando-se do impacto emocional causado pelo incêndio, o presidente Macron achou que seria o momento de desnaturar a catedral, como outros já tentaram, e fez o anúncio de um concurso de projetos modernizantes de restauração. Pressurosamente acolhida pela grande mídia, essa proposta parecia indicar que os franceses aprovavam a mudança de estilo auspiciada pelo presidente. Mas se ele o fizesse, incorreria em flagrante violação da lei francesa e dos tratados internacionais, que obrigam o país a restaurar os monumentos históricos no estado em que estavam no momento da catástrofe (à l’identique, segundo a concisa expressão francesa).
Redes sociais e a grande mídia anunciaram pouco depois uma avalanche de projetos elucubrados por conceituados estúdios de arquitetura contemporânea. Rivalizavam eles entre si no item feiura, sobressaindo a nota panteístico-ecológica, bem ao gosto dos próceres do Sínodo Pan-amazônico, além de sugestões posteriores para o mundo pós-pandemia.
No tempo de Luís XV, “projeto ecológico” recusado
Há muito se tenta desfigurar Notre-Dame. No Ancien Régime,3 chegou à mesa do rei Luís XV um plano radical do arquiteto Pierre Patte, reunindo muitos outros projetos. Assim o descreve Yvan Christ, o maior historiador da arquitetura de Paris: “Eis a Île de la Cité reunida à Île Saint-Louis. Notre-Dame destruída, ao mesmo tempo que dezessete pequenas igrejas inteiramente inúteis, por sua falta de tamanho e porque não têm grandeza e dignidade para representar o ‘Ser Supremo’. A esse ‘Ser Supremo’ se dedicaria um templo no local da Place Dauphine [que desapareceria]”.4
Já emergia então sob Luís XV esse ‘Ser Supremo’ dos agnósticos, tão enaltecido depois pela Revolução que se aproximava. O plano previa destruir a catedral de Nossa Senhora de Paris e dedicar-lhe a ilha onde ela se encontra, incluindo uma estátua do rei e de outros monumentos a serem construídos entre tufos de vegetação, tudo ao gosto do bon sauvage de Jean-Jacques Rousseau, precursor do ecologismo.
Outras reformas previstas para ambos os lados do rio Sena deformariam para sempre a fisionomia da Paris medieval. Entretanto Luís XV se opôs, porque a demolição de incontáveis casas particulares, lojas e ateliês poderia suscitar um motim popular. O projeto ficou arquivado e não se realizou.
A opinião pública a favor da tradição
Pouco depois do incêndio de 2019, a Société Française pour la Défense de la Tradition, Famille et Propriété (TFP francesa) saiu às ruas de Paris numa campanha de assinaturas, a serem entregues ao presidente e ao ministro da Cultura, pedindo que essa joia da arte gótica medieval fosse restaurada sem qualquer concessão à arte dita moderna ou contemporânea. A petição da TFP francesa afirma: “Notre-Dame é um lugar sagrado que pertence a Deus e à História, o qual não pode ser transformado em joguete nas mãos de arquitetos ávidos de ganhar fama, e que desprezam a nossa identidade”.5 A campanha de rua foi acompanhada de um abaixo-assinado digital, atingindo 143.000 assinaturas. A iniciativa presidencial foi perdendo apoio, enquanto os apelos pela restauração “à l’identique” se multiplicavam.
Opuseram-se à mudança os que amam a França antiga, tradicional, católica, nascida na Idade Média; do lado modernizante insistiam os cultores da França revolucionária, gerada pelos crimes da Revolução Francesa (1789). Um entrechoque não apenas teórico, mas muito concreto, e diz respeito ao reerguimento da agulha neogótica de 169 metros de altura, criada no século XIX pelo genial arquiteto Viollet-le-Duc.
Os especialistas mais categorizados produziram um relatório de 3.000 páginas, entregue ao Ministério da Cultura pelo arquiteto-chefe de Notre-Dame, Philippe Villeneuve. Em 9 de julho de 2020, diante da forte insistência da opinião pública e dos argumentos irretorquíveis dos especialistas, o presidente Macron renunciou à sua fantasia modernista.6 Definia-se assim o pleito que a revista Connaissance des Arts qualificou de “querela entre os Antigos e os Modernos”.7
Apareceram e ainda aparecerão tentativas de bombardear a decisão. Por exemplo, alegou-se ser um absurdo restaurar o telhado com madeira de carvalho, porquanto o antigo pegou fogo; e ao invés disso deveriam ser utilizados materiais modernos, como o concreto ou o aço, que seriam mais duráveis, econômicos e de rápida montagem. Mas logo a Associação Carpinteiros Sem Fronteiras, integrada por marceneiros profissionais, demonstrou ser possível reconstruir “à l’identique” a armação de carvalho do telhado de Notre-Dame. Acompanhados por testemunhas, em menos de uma semana fizeram uma das 25 “tesouras” no bosque do castelo de Ermenonville (em tamanho real, incluindo o abate das árvores e seguindo as mesmas técnicas e instrumentos dos carpinteiros medievais). Essas tesouras são estruturas triangulares de 10 metros de altura por 14 de largura, que sustentam a cobertura da catedral. As toras seculares de carvalho que sustentavam o telhado duraram desde a Idade Média, e, se não fosse o incêndio, poderiam servir por mais oito séculos!
Esse “teste” provou que com apenas um milheiro dos milhões de carvalhos que o Estado possui nos bosques nacionais, e por um custo quase irrisório, toda a estrutura do telhado de Notre-Dame ficaria pronta entre cinco a oito meses! O transporte se faria pelo rio Sena, e a madeira seria trabalhada ao pé da catedral, “strictement à l’identique”8 do legado medieval. Esse teste ficou registrado em vários vídeos no Youtube.
A agulha da catedral e a voz do anjo
O que há na agulha de Notre-Dame para dividir de tal maneira os franceses e empolgar milhões de estrangeiros que visitam a catedral?
Passeando pelo jardim junto ao Sena, vi muitas vezes pessoas contemplando em silêncio essa maravilhosa peça arquitetônica, cuja beleza material “fala”, como um anjo falaria na ordem sobrenatural. A agulha age sobre os que a admiram como os anjos agem sobre as coisas boas, ajudando a amar seus aspectos mais altos.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comentou: “Quando me dei consciência da flecha de Notre-Dame, foi uma alegria enorme para mim e uma espécie de alívio. Pois a magnífica fachada de Notre-Dame poderia ser comparada a um leão, mas sem juba; e a flecha completa o que faltava, alivia, põe uma nota de graça, fantasia, delicadeza e de um quase irreal que satisfaz. Pode-se conceber que o anjo da flecha de Notre-Dame seja um anjo que proteja todas as belezas do gênero da agulha no mundo inteiro. A mensagem das torres é robustecida e aliviada pelo cântico gracioso da flecha!”9
As duas torres falam colossalmente do real. Mas a flecha fina e esguia, subindo rumo ao infinito, representa o irreal, que aprimora o melhor da realidade da catedral e sua legenda. É como se um espírito angélico tivesse a agulha como residência (num sentido analógico, pois o anjo é puro espírito), e a partir dali interviesse em favor de todas as belezas do mundo afins com aquela flecha. Não espantaria se demônios jogassem em sentido contrário, como os que favoreceram também o incêndio recente da catedral de Nantes.
Em sua fachada, o maravilhoso templo exibe uma ordenação grandiosanos episódios da História Sagrada, esculpidos em cada portal, assim como na fileira dos Reis da genealogia de Jesus Cristo, que tem paralelismo com a genealogia dos reis da França, e assim por diante. Porém, quando a fraqueza humana se posiciona diante de tanta grandeza, começa a sentir fomedo imprevisto. E a flecha é imprevista, como também o são os dons do Espírito Santo quando surpreendem uma pessoa. Ela fornece o charme que completa o vigor das torres — as quais, aliás, não foram terminadas.
A catedral e o reinado de Cristo em Maria
A catedral foi negligenciada, incompreendida, tendo, inclusive, o Conselho de Luís XVI decidido destruí-la. A decisão só não foi cumprida porque estourou a Revolução Francesa, e todos passaram a se preocupar com outras coisas.10 Porém, no fundo da “querela entre os Antigos e os Modernos” ainda arde a oposição furiosa entre os que desejam o reino do Imaculado Coração de Maria e os que blasfemam pelo reino do demônio que infecciona o mundo.
Do alto da fachada onde está entronizada, aureolada pela imensa rosácea, Nossa Senhora sorri para seus filhos que passam pela praça parisiense, como que convidando-os a lutar pela restauração da Cristandade; e também impedir para sempre a desfiguração de sua catedral com projetos contemporâneos e monstruosos.
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Notas:
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