Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
5 min — há 4 anos — Atualizado em: 7/18/2020, 5:49:40 AM
A bofetada humilha, avassala, abate; contudo, pode acender brios. Enfim, o efeito depende em parte de quem a recebe. Nelson Rodrigues achava: “O pior da bofetada é o som. Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa, nem humilhação, nada”. Recep Tayyip Erdogan [foto abaixo], presidente da Turquia, esbofeteou o Ocidente, desdenhou autoridades religiosas e políticas, ao destinar a igreja de Santa Sofia [foto acima], até então museu, ao culto muçulmano. Estralejou alto o sopapo, ecoou humilhante o som ensurdecedor. A partir de 24 de julho, a antiga catedral bizantina estará aberta ao culto muçulmano. Pelo jeito, foi estudada e prenunciativa bofetada; virão outras, tudo o indica.
Declarou o autocrata: “Hoje, a Turquia se livrou de uma vergonha. Santa Sofia vive, de novo, uma de suas ressurreições, como já sucedeu várias vezes no passado. A ressurreição de Santa Sofia prenuncia a libertação da mesquita Al-Aqsa” em Jerusalém. Continuou: “Significa que o povo turco, os muçulmanos e toda a humanidade têm novas coisas para dizer ao mundo”. Que novas coisas terá a Turquia para dizer ao mundo? Pela voz dos símbolos, já está falando. No anúncio televisionado, o presidente da Turquia citou um intelectual turco, Osman Yüksel Serdengeçti, que anunciou a vinda de um segundo conquistador para devolver Santa Sofia ao Islã. “Este dia chegou”, proclamou Erdogan.
Como se sabe, a basílica de Santa Sofia [foto lado, interior da basílica] foi construída no século VI pelos bizantinos (imperador Justiniano), depois foi catedral cismática. Com a conquista de Constantinopla em 1453 pelo sultão Maomé II, o Conquistador, foi feita mesquita; a partir de 1934, museu.
Borbotaram de todos os quadrantes respostas à insolência do presidente Erdogan, ainda que até agora fracas; de outro modo, palavras desacompanhadas de medidas concretas. Três reações significativas resumem um lado da questão. Na véspera do desplante, Mike Pompeo, secretário de Estado dos Estados Unidos, tentou evitar a desfeita, solicitando ao líder turco “continuar a conservar Santa Sofia como museu, exemplo de seu compromisso de respeitar as tradições culturais e a rica história que moldaram a república turca”. Jean-Yves Le Drian, ministro do Exterior da França, em comunicado, declarou: “A França deplora a decisão do Conselho de Estado turco de modificar o estatuto de museu de Santa Sofia e o decreto do presidente Erdogan pondo-a sob a autoridade da direção turca dos negócios religiosos. Tais decisões colocam em causa um dos mais simbólicos atos da Turquia moderna e laica. A integridade dessa joia religiosa, arquitetural e histórica, símbolo da liberdade de religião, de tolerância e de diversidade, inscrita no patrimônio mundial da UNESCO, deve ser preservada”. Ameaçadas estão a modernidade, a laicidade, a tolerância, a liberdade de religião e a diversidade, é a censura do governo francês. Finalmente, o presidente Vladimir Putin expôs a seu colega turco o desagrado causado na Rússia inteira pela decisão do governo turno. Comunicado do Kremlin afirmou que o presidente russo “chamou a atenção de Recep Tayyip Erdogan para a significativa desaprovação causada na Rússia pela decisão de mudar a situação de Santa Sofia”.
Ou seja, entendia-se como adesão estável à modernidade o ato do presidente Mustafá Kemal Ataturk, fundador da república turca, que em 24 de novembro de 1934, como foi dito, transformou em museu a até então mesquita. A Turquia deixava para trás a condição de estado muçulmano confessional, com legislação enraizada no Corão e adotava princípios constitutivos vigentes na maioria dos países ocidentais. Caminhava em direção à Europa, à qual já pertence, geograficamente, pela metade. Com efeito, desde décadas ela faz parte da OTAN, tem lugar em organismos internacionais e busca fazer parte da União Europeia. Com a bofetada, ela se distanciou da Europa e dos Estados Unidos, aproximando-se de Estados muçulmanos. Potência regional, representa muito na junção da Ásia e da Europa o país de 80 milhões de habitantes (renda per capita em torno do dobro da brasileira), por volta de 800 mil quilômetros quadrados.
Fica a questão da Rússia, inimigo histórico, justificativa política importante para a adesão à OTAN e ao Ocidente. Sintomaticamente, no meio da condenação geral, inclusive dos cismáticos russos, Putin teve gesto quase formal. Ele também utiliza a fórmula nacionalismo, patriotismo e religião para se manter no poder. Autoritarismo, nacionalismo, religião, defesa de uma vaga identidade pátria são vias que favorecem uma aliança futura, presumivelmente prejudicial aos Estados Unidos e à Europa.
Falava acima, um lado da questão, era o político. O outro é o religioso. Destaco em particular um ponto. O enorme edifício do ecumenismo religioso entre Islã e Cristianismo, construído pacientemente há décadas, mambembe e artificial, é verdade, mas enfim levantado, recebeu trinca de alto a baixo. A afirmação desafiadora das crenças do Islã, a proclamação de que é apenas o primeiro passo em novas conquistas, bem como a inteira desconsideração dos sentimentos dos católicos e dos cismáticos, deixam no ar um cheiro de jihad, uma atmosfera de enfrentamento.
O Papa Francisco se declarou “aflitíssimo”. Bartolomeu, patriarca ecumênico de Constantinopla, já havia tomado posição, tendo advertido, Santa Sofia era “um símbolo do encontro, solidariedade, compreensão mútua entre o Cristianismo e o Islã”. Foi adiante “transformá-la em mesquita poderia lançar milhões de cristãos no mundo inteiro contra o Islã”. De novo aparece o clima de enfrentamento, pois estava sendo destruída a atmosfera de encontro, solidariedade e compreensão. A igreja cismática russa lamentou a decisão e afirmou que ela trará “consequências sérias para toda a civilização”. Seu porta-voz observou: “Constatamos que a inquietação de milhões de cristãos não foi levada em consideração”.
Resposta de Erdogan: trata-se de exercício de direitos soberanos. Não amolem, em linguagem informal. “Os que não se preocupam com a islamofobia em seus próprios países, atacam a vontade da Turquia de exercitar seus direitos soberanos. Tomamos esta decisão sem levar em conta o que os outros dizem, mas considerando nossos direitos, como fizemos na Síria, Líbia e em outros lugares”.
Pelo que representa e prenuncia, a bofetada aprofunda trincas na aliança ocidental, é afirmação desafiante de poder muçulmano, deixa em frangalhos as alegações em que se esteia o diálogo ecumenista entre cristãos e muçulmanos. Virão outros sopapos. Se recebidos com resignação derrotista, representarão recuos. Podem, contudo, acender brios. Aí a história seria outra.
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