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A Dormição e Assunção da Virgem – Fra Angelico (1425). Isabella Stewart Gardner Museum (Boston).

Para que Maria morresse, bastaria Deus suspender o milagre que A retinha na Terra. Como o amor d’Ela pelo Filho A devorava e o desejo de unir-se a Ele A consumia, minando suas energias, era preciso que uma força todo-poderosa A sustentasse. Quando chegou para Ela o momento de receber a eterna recompensa, o Altíssimo não teve senão que suprimir essa força misteriosa. Então o ardor de sua imensa caridade abateu a Virgem Puríssima, e sua alma de Rainha voou para o Céu com as asas de seu amor.

  • Pe. Thomas de Saint-Laurent *

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 896, Agosto/2025.

Gloriosamente ressuscitado, Jesus subiu ao Monte das Oliveiras, onde algumas semanas antes Ele havia rezado na agonia e no sangue. Abençoou pela última vez os seus e se elevou nos ares pelo próprio poder.

Uma nuvem luminosa O ocultou dos olhares da Mãe e dos discípulos que, olhos fixos no céu feérico do Oriente, procuravam atravessar as profundezas diáfanas do firmamento. O triunfo do Mestre enchia suas almas de alegria, enquanto uma melancolia suave misturava-se ao contentamento: partindo, Cristo tinha levado seus corações.

Dois anjos vestidos de branco vieram recordar-lhes as realidades da vida. A Virgem e os discípulos retornaram juntos ao Cenáculo.

Maria deveria passar ainda muitos anos na Terra onde saboreara inefáveis alegrias na intimidade de seu Filho. Doravante privada de sua presença visível, Ela exerceria junto à Igreja nascente o papel de Mãe confiado pelo Salvador.

A separação pesou terrivelmente a Ela, que encontrava na comunhão diária consolação para as saudades. Segundo a Tradição, Maria recebia a adorável Eucaristia do Apóstolo São João. Sua Fé vivíssima fazia com que reencontrasse, sob as aparências do pão, aquele Corpo que Ela formou, alimentou, tinha visto sofrer e morrer por nós. Mas desejava rever o quanto antes, face a face, o Filho que tanto amava.

 Quanto mais se prolongava seu exílio, maior era o ardor de seus desejos. Soou por fim o momento bendito em que o próprio Mestre veio buscá-la para coroá-la no Céu.

“Maria expirou ou foi transformada à imagem de seu Filho ressuscitado?”

A Virgem Imaculada expirou.

Quando meditamos atentamente nos privilégios dessa Rainha incomparável, perguntamo-nos com espanto por que o Altíssimo A fez morrer. A lei que condenava a humanidade culpada ao mais terrível dos castigos temporais não podia atingi-la, pois que fora concebida sem pecado original. Por outro lado, esse corpo virginal, que carregou durante longos meses a Vida Eterna, não teria podido haurir nesse contato divino uma radiosa imortalidade?

Essas considerações agitavam tão vivamente um dos mais ilustres Doutores do Oriente, Santo Epifânio, que ele escreveu numa de suas obras: “Maria expirou realmente, ou foi somente transformada num instante à imagem de seu Filho ressuscitado? É um dos problemas que eu não ousaria resolver por minhas próprias luzes”.1

O ensinamento tradicional da Igreja não nos deixa nenhuma dúvida sobre esse ponto. Nossa Senhora morreu verdadeiramente.

Convinha, aliás, que assim fosse. O Salvador nos mostrou o caminho que devemos percorrer a exemplo d’Ele. Maria, a mais gloriosa das meras criaturas, não era maior que Jesus: cumpria, pois, que também Ela desse o último suspiro e entregasse como Ele sua alma ao Pai. Deus queria ainda, por nosso amor, que Ela atenuasse para nós com seu exemplo as angústias desse terrível trânsito.

A morte da Imaculada foi tão real como muito consoladora e serena. Assemelhou-se ao sono tranquilo de uma criança que adormece no berço.

E não poderia ter sido de outro modo. Nenhum medo seria capaz de perturbar sua consciência radiosa. Sua alma, imaculada desde o primeiro instante, nunca fora tisnada pela mais ligeira imperfeição. Nenhuma separação terrena poderia partir seu coração.

Jesus, seu único amor, A esperava para além do túmulo. Juntar-se a Ele seria sua alegria suprema. Nenhum sofrimento torturou seu corpo: em recompensa pelo cruel martírio que Ela suportou ao pé da Cruz, o Filho A poupou dos transes da agonia.

Aliás, é digno de nota o delicioso consolo dispensado por Nosso Senhor nos últimos instantes de todos aqueles que O assistiram no Gólgota. São João, o único Apóstolo presente no Calvário, foi o único que não terminou sua vida pelo martírio de sangue.

Creio na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna

O pensamento da morte nos aterroriza. A lembrança de nossas faltas nos assusta: como nos acolherá o temível Juiz, a quem com tanta frequência e tão gravemente ofendemos? A perspectiva das separações supremas nos dilacera. Será preciso deixar os corações amados, que tantos vínculos unem estreitamente a nós. E trememos pensando na morte terrível, que virá um dia nos surpreender e abater.

Se maior fosse a nossa fé, encontraríamos nos dogmas de nossa Religião preciosas consolações.

Pecamos frequentemente, é verdade. Mas não foi pelos pecadores que Nosso Senhor veio ao mundo? Venit Filius hominis quaerere et salvum facere quod perierat (O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido).Não acolheu com imensa piedade e com ternura infinita as almas culpadas?

Não perdoou as lágrimas de Madalena? Não protegeu e converteu a infeliz que os judeus haviam surpreendido no próprio ato de sua falta? Mais ainda, Ele vai ao encalço da ovelha tresmalhada, não encontrando repouso senão depois de tê-la reconduzido sobre os ombros ao rebanho, com a cabeça dolorida apoiada calorosamente sobre seu Coração adorável.

A morte nos separa, mas só por um instante. Ela jamais rompe os laços estabelecidos sob o olhar de Deus. Não rezais diariamente estas palavras, que levaram Santa Teresa a transportes de reconhecimento: “Creio na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna”?

Possuindo certezas tão absolutas, como pode um cristão temer a morte? Se essas verdades não vos impregnam de paz, suplicai à Santíssima Virgem que vos ilumine. Ela vos fará compreender um pouco melhor a Misericórdia de seu Filho e as esperanças da eternidade.

A alma de Nossa Senhora voou para o Céu nas asas de seu amor

Quais foram os meios empregados por Deus para chamar Nossa Senhora a Si?

Sua Imaculada Conceição A punha a salvo dessas doenças humilhantes que acabrunham nossa miséria. Maria não podia conhecer nem a decrepitude da velhice nem as lesões orgânicas da doença.

Sua vida não fora senão uma sucessão ininterrupta de prodígios: foi por um milagre que Ela ficou livre da mancha original; foi por um milagre que concebeu o Verbo Encarnado; foi por um milagre que pôde suportar as alegrias da maternidade divina; foi por um milagre que não sucumbiu em seu martírio.

Para que Maria morresse, bastaria Deus suspender o milagre que A retinha na Terra. Como o amor d’Ela pelo Filho A devorava e o desejo de unir-se a Ele A consumia minando suas energias, era preciso que uma força todo-poderosa A sustentasse.

Quando chegou para Ela o momento de receber a eterna recompensa, o Altíssimo não teve senão que suprimir essa força misteriosa. Então o ardor de sua imensa caridade abateu a Virgem Puríssima, e sua alma de Rainha voou para o Céu com as asas de seu amor.

A História não nos relata as circunstâncias e a data desse bem-aventurado transe. Contudo, tradições veneráveis nos dão detalhes que, sem engajar a nossa fé, tocam a nossa piedade.

O Anjo Gabriel, que A havia saudado como cheia de graça, visitou-A novamente para anunciar-lhe sua próxima partida. Uma indescritível alegria inundou a alma de Maria.

A partir daí suas forças se declinaram rapidamente. Os Apóstolos, que circunstâncias providenciais haviam reunido em Jerusalém, cercavam o leito onde enlanguescia sua Mãe. Ela os abençoou com toda ternura e lhes prometeu atender sempre as orações de seus filhos na Terra.

Depois, levantou os olhos para o Céu. Jesus, radiante de glória, inclinou-se para Ela e, numa carícia filial, conduziu sua alma ao reino eterno.

A Trindade adorável colocou o diadema da realeza em Nossa Senhora

Coroação da Virgem – Agnolo Gaddi (1350–1396). The National Gallery, Londres

Após a Imaculada ter exalado o último suspiro, os Apóstolos prepararam piedosamente seus funerais. Eles A enterraram de acordo com os costumes judaicos, depositando-A em um túmulo que, segundo se crê, se encontrava na vizinhança imediata de Getsêmani.

Se as consequências da morte não deviam atingir aquele corpo santificado pela Presença Real do Verbo Encarnado, como poderia a corrupção ousar atacar sua carne virginal, da qual tinha querido nascer para o tempo a Pureza Eterna e Incorruptível? O Deus feito homem não tardou em ressuscitar sua Mãe.

Por quanto tempo o corpo de Maria permaneceu no sepulcro? Nada sabemos ao certo a tal respeito. Pensa-se geralmente que, para tornar Nossa Senhora mais conforme com a semelhança divina, Jesus A ressuscitou na aurora do terceiro dia e A transportou ao Céu.

Os Padres da Igreja descreveram longamente em seus discursos a entrada triunfal da Imaculada no Paraíso. Eles no-la mostram elevando-se acima dos santos e dos anjos, subindo sempre mais alto nos cimos de glória inacessíveis às outras criaturas, e detendo-se diante do trono imortal que o Salvador lhe preparou junto do seu.

A Trindade adorável coloca o diadema da realeza sobre sua fronte e A proclama soberana de todo o Universo. Maria recebe o tesouro das graças merecidas pelo Sangue redentor, haurindo dele às mancheias os dons celestiais que na sua incomparável bondade distribui conforme sua misericórdia e seu amor.

Falamos com frequência do poder que a Mãe de Cristo possui no Céu. Caro leitor, cumpre-vos tirar uma certeza absoluta destas meditações: a Santíssima Virgem não se recusará jamais ouvir vossas preces. Ainda que para atendê-las Ela devesse realizar um milagre, se tal milagre fosse necessário para a vossa salvação Ela não hesitaria de operá-lo. Essa é a crença universal da Igreja. Se quiserdes tornar essa convicção sólida em vós, percorrei os inúmeros volumes dos santos e dos teólogos.

A crença inquebrantável da Igreja na Assunção da Santíssima Virgem

A Assunção da Virgem – Michel Sittow (1469-1525). National Gallery of Art, Washington.

         Conta uma legenda que, alguns dias após a morte de Maria, os Apóstolos, desolados por terem perdido sua Mãe, quiseram contemplar pela última vez seus restos benditos. Foram, pois, visitá-la em seu túmulo. Retiraram a grande laje que fechava a entrada e penetraram na gruta sepulcral. O corpo da Imaculada não estava mais lá. Na pedra sobre a qual A tinham colocado havia apenas flores frescas desabrochadas. Delas exalava um perfume de suave odor, que os fez rejubilar deliciosamente, reconfortando-os.

         Essa lenda remontando aos primeiros tempos do Cristianismo não apresenta talvez todas as características de autenticidade. Mas possui ao menos um duplo mérito: atesta a crença inquebrantável da Igreja na Assunção da Santíssima Virgem, e nos mostra de modo gracioso as alegrias que nos proporciona a devoção à nossa Mãe do Céu.

         Guardai preciosamente em vossos corações o amor a Maria, e nesse coração — às vezes tão angustiado, talvez tão culpado — Maria fará desabrochar flores que jamais fenecerão3.

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Notas:

1.     Santo Epifânio, Contra os hereges, livro III, no. 78.

2.     São Lucas 19, 10.

3.     A Virgem Maria, A Assunção da Virgem – Michel Sittow (1469-1525). National Gallery of Art, Washington. A Assunção da Virgem – Michel Sittow (1469-1525). National Gallery of Art, Washington. , Série Cultura Religiosa nº 3 – Artpress Indústria Gráfica e Editora Ltda, São Paulo, (1996), cap. XI, pp. 103-109. (A Redação de Catolicismo apenas inseriu alguns subtítulos).

O AUTOR

Oriundo de nobre família do sul da França,o Padre Thomas de Saint-Laurent nasceu em Lyon no dia 7 de maio de 1879, e faleceu em Uzès no dia 11 de novembro de 1949. Ordenado sacerdote em 1909, foi designado no ano seguinte Pároco de Santa Perpétua em Nîmes. Exerceu prodigiosa atividade apostólica, distinguindo-se muito cedo como insigne pregador e escritor.

Destacou-se como capelão da Juventude Católica (1912) e missionário apostólico (1919).        Em 1920 foi nomeado cônego honorário da Catedral de Nîmes e, cinco anos depois, capelão do Carmelo de Uzès, onde faleceu após duas décadas de funções.

Como escritor, publicou diversos livros na Editora Aubanel Frères, de Avignon, destacando-se entre outros: coleção Almas de Santos (Santa Teresinha do Menino Jesus, São Francisco de Assis, São João da Cruz, São Vicente de Paulo); Com Jesus sofredorA Virgem MariaNossas amizades após a morteA arte de falar em público para uso de todosA timidezO domínio de si mesmo e O Livro da Confiança. Este último, com várias edições em diversas línguas, é sem dúvida o mais famoso de todos.

No prefácio que escreveu para a edição australiana de O Livro da Confiança, assim se referiu o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “O Pe. Saint-Laurent recebeu da Providência o dom de falar diretamente às almas, fazendo sentir no seu mais íntimo o valor da confiança e apaziguamento, de um modo que por vezes se diria miraculoso, as tormentas que sacodem, por vezes, até as almas mais fiéis.”

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