Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
14 min — há 4 anos — Atualizado em: 8/25/2020, 6:35:32 PM
Para alguns altos prelados, Deus jamais castiga. Dizer que o flagelo da atual pandemia possa ser um castigo divino seria, para eles, uma coisa pagã. Foi o que declarou em recente entrevista Dom Mario Delpini, atual sucessor de São Carlos Borromeu na arquidiocese de Milão. O repórter perguntou-lhe se “devemos implorar a Deus por socorro porque, como dizem alguns pregadores, é Ele quem envia o flagelo do vírus”. A resposta do arcebispo foi surpreendente: “Essas são teorias sobre Deus, que eu não sei de onde veem, e que não compartilho. A oração agora não pretende pedir a Deus que remova um castigo que Ele mesmo enviou; nós não temos um Deus irado que deve ser acalmado. Para mim, isso parece uma concepção muito pagã”.1
O Cardeal Antônio Marto, bispo de Leiria-Fátima, Portugal, se pronunciou do mesmo modo. Questionado se concordava com os padres, e mesmo cardeais, que alegavam ser o coronavírus um castigo de Deus, ele respondeu, em flagrante contraste com a mensagem de Fátima: “Isso não é cristão. Só o diz quem não tem na sua mente ou no seu coração, por ignorância, fanatismo sectário ou loucura, a verdadeira imagem de Deus Amor e Misericórdia revelada em Cristo”.2
Outro prelado, o Cardeal Blase Cupich, arcebispo de Chicago, também parece dar pouco valor à oração durante uma pandemia. Com relação ao desejo de alguns fiéis, de que as missas sejam permitidas aos fiéis nas igrejas, ele comentou: “Religião não é mágica, onde apenas fazemos orações e pensamos que as coisas vão mudar. Deus nos deu um cérebro e o dom da inteligência, e temos que usá-los neste momento”.3
O Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap. [foto abaixo], Pregador da Casa Pontifícia desde 1980, também negou, em sermão na noite da Sexta-Feira Santa na Basílica de São Pedro vazia, que a atual pandemia pudesse ser um castigo de Deus: “Deus é nosso aliado, não o aliado do vírus! […] Se esses flagelos fossem castigos de Deus, seria inexplicável, por que eles atingem bons e maus; e porque, geralmente, os pobres sofrem as maiores consequências. São eles mais pecadores que outros?”.4
Não existem razões para uma punição?
Como podem esses eclesiásticos ter tanta certeza de que a pandemia de coronavírus não é uma manifestação da ira de Deus, pelos muitos pecados hodiernos? E certeza também de que não é um castigo ou um aviso de Deus?
A apostasia impressionante da sociedade moderna, em relação à verdade do Evangelho, leva muitos a se perguntarem se Deus não está enviando uma mensagem à humanidade por meio do coronavírus. Ele poderia estar dizendo: “Eu repreendo e castigo aqueles que amo. Reanima, pois, o teu zelo e arrepende-te” (Apoc. 3,19).5
Poderia Deus estar mostrando Seu supremo descontentamento com a amoralidade, a libertinagem, a perda de fé e o pecado hoje reinantes?
Se considerarmos apenas o aborto voluntário, por exemplo, não poderia a pandemia ser um castigo divino pelo sangue de milhões de vítimas inocentes, que sobe ao Céu clamando a Deus por justiça? “Eles derramaram o sangue dos santos como água ao redor de Jerusalém. E não houve quem os sepultasse. Vinga, ó Senhor, o sangue dos Teus santos, que foi derramado sobre a terra”.6
As declarações dos eclesiásticos acima mencionados resultam de uma falsa noção da misericórdia e justiça divinas, e estão em contradição com a doutrina católica e a Tradição. Por isso parece oportuno relembrar alguns pontos doutrinários e responder a algumas objeções.
● “Se a pandemia de coronavírus pode ser explicada cientificamente, não pode ser uma intervenção divina”.
Esta é a objeção usual à intervenção de Deus. Se a ciência pode explicar a natureza e as consequências do coronavírus (SARS-Cov-2), não haveria necessidade de considerar a intervenção divina. Entretanto, embora a ciência positiva possa explicar a mecânica dos desastres naturais, ela não explica seu significado transcendente.
Excluir qualquer intenção divina nos eventos, seria negar que “todas as coisas, na medida em que participam da existência, devem igualmente estar sujeitas à providência divina”.7 Caso contrário, Deus teria feito a criação sem fim e propósito, portanto não seria sábio; ou então Ele seria incapaz de intervir em sua própria criação, portanto não seria onipotente. Mas isso equivaleria a negar sua existência, pois a simples possibilidade de um Deus imperfeito contradiz a própria noção de Deus. Ou Ele é um Ser absolutamente perfeito, ou o próprio conceito de Deus não faz sentido.
Nada na criação escapa ao governo de Deus
De fato, Deus não apenas criou todos os seres por meio de um ato soberano de sua divina Vontade, mas os sustenta na existência e os guia para o fim para o qual os criou, a saber, Sua glória extrínseca, sem entretanto tirar a liberdade das criaturas racionais. Em outras palavras, toda a Criação está sob o poder do governo divino, e sujeita aos sábios desígnios de Deus. Como ensina São Tomás de Aquino:
“Deus é governador e causa dos seres; pois a Ele pertence produzi-los e dar-lhes a perfeição, o que tudo é próprio de quem governa. Ora, Deus é, não a causa particular de um gênero de seres, mas a causa universal, da totalidade dos seres. Por onde, assim como nada pode existir sem ser criado por Deus, assim também nada há que lhe possa escapar ao governo. […] Por onde, como nada pode haver que não se ordene à bondade divina como fim, segundo do sobredito se colhe, impossível é a qualquer ser subtrair-se ao governo divino”.8
São Tomás explica ainda que, embora esse governo divino seja direto e imediato do ponto de vista do desígnio, isso não significa que Deus não possa usar meios secundários para a execução final de seus planos. Consequentemente, Ele pode usar os anjos ou até homens para intervir na História. Ele pode usar as forças naturais e as leis físicas, que são derivadas da natureza dos seres quando Ele os criou, e seus relacionamentos entre si.9
No entanto, apenas porque Deus normalmente se utiliza dessas causas secundárias para executar seus planos, isso não significa que Ele não esteja direcionando, de maneira superior, todas as coisas para o seu verdadeiro propósito, que é a sua glória. Deus geralmente age na História sem suspender as leis da natureza, mas orientando-as na obtenção de resultados específicos. Por exemplo, quando o Profeta Elias orou pedindo pela chuva em Israel, que estava sofrendo com uma seca terrível, Deus fez com que muitas nuvens se juntassem e chovesse fortemente (1 Reis 18, 41-45). Em outras ocasiões Ele suspendeu as leis da natureza, como, por exemplo, quando os israelitas cruzaram o Mar Vermelho (Ex 14, 16).
De fato, a perfeição absoluta de Deus exige que Ele aja continuamente na História. Isto é abundantemente confirmado pelas Sagradas Escrituras e pelos escritos dos Padres e Doutores da Igreja. Portanto, ao analisar a atual catástrofe, o governo de Deus no mundo deve ser levado em consideração.
● “Deus é a própria bondade, portanto, jamais castiga os homens”.
Esta é outra objeção comum ao castigo divino. No entanto, se levada à sua consequência lógica e última, negaria o dogma da existência do inferno.
Visto que Deus é o Ser absolutamente perfeito e a causa de toda perfeição, Ele deve ter em Si todas as perfeições possíveis.10 Assim, Ele não é apenas infinitamente bom e misericordioso, mas também infinitamente justo.
Deus reserva a recompensa ou o castigo final e definitivo para a outra vida, como pode ser visto na parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-30). Mas Ele também castiga nesta Terra. Esta verdade é formalmente encontrada nas Sagradas Escrituras. Alguns exemplos são as pragas do Egito (Ex 7-8), o dilúvio (Gen. 6-8), a destruição de Sodoma e Gomorra (Gen. 19) e a destruição de Jerusalém (Mt 24, 1-2).
Deus julga e castiga os homens, e cada um individualmente
Além disso, São Paulo afirma que a “autoridade [terrena] está a serviço de Deus, […] não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal” (Rom. 13, 4). Mas, como é evidente, nenhuma autoridade humana poderia ser um ministro ou agente da justiça divina, se o próprio Deus não aplicasse o castigo terrestre.
Segundo o Apóstolo, o homem não pode escapar à justiça divina, seja nesta vida ou na próxima: “Tu, ó homem […] pensas que escaparás ao juízo de Deus? […] Mas, pela tua obstinação e coração impenitente, vais acumulando ira contra ti, para o dia da cólera e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo as suas obras: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, buscam a glória, a honra e a imortalidade; mas ira e indignação aos contumazes, rebeldes à verdade e seguidores do mal” (Rom. 2, 2-8).
Deus é misericordioso. Mas “sua misericórdia se estende, de geração em geração, sobre os que o temem” (Lc 1, 50), proclama a Santíssima Virgem no Magnificat.
● “Como a calamidade afetou tanto os bons quanto os maus, não pode ser um castigo divino — Deus jamais castigaria o bom”.
Para tratar adequadamente desta objeção, cumpre primeiro relembrar alguns ensinamentos básicos de nossa Fé católica:
a — Deus é o Senhor da vida: a Ele devemos nossa existência; e, assim como Ele livremente nos deu vida, é livre para no-la tirar. Não há injustiça quando Ele o faz, independentemente do estágio da vida, seja a de um bebê, de uma criança, de um adulto em pleno vigor, ou de alguém que atingiu a venerável velhice.
b — A vida e a felicidade eternas, não as terrenas, são nossos objetivos finais: além do mais, nossa vida terrena e a felicidade não são fins em si mesmas. Elas não são a principal razão de nossa existência. São o caminho, o meio para alcançarmos a vida eterna, que é nosso verdadeiro objetivo. Assim, São Paulo nos lembra: “Nós, porém, somos cidadãos dos céus” (Fip. 3, 20). O modo de agir de Deus se torna incompreensível quando perdemos de vista a vida eterna e a felicidade celestial.
c — Deus pune o pecado coletivo coletivamente: quando o pecado se generaliza e é grandemente tolerado, ou cometido por indivíduos muito representativos, ele compromete toda a família, a cidade, a região, a nação, e mesmo épocas históricas. Essa dimensão coletiva torna o pecado particularmente grave e ofensivo a Deus, trazendo como resultado o castigo divino também coletivo. Os bons e os maus sofrem: os primeiros, para se tornarem mais perfeitos; os segundos, como castigo por suas faltas e convite à conversão.
Santo Agostinho explica o castigo coletivo
O grande Santo Agostinho, bispo de Hipona, Doutor e Padre da Igreja, viveu durante as invasões bárbaras que provocaram a queda do Império Romano do Ocidente. De fato, os vândalos estavam assaltando as muralhas da sua cidade quando ele morreu.
Durante esse período conturbado, os romanos pagãos culparam a Igreja pelo colapso do Império e da Civilização. Argumentavam eles que, se o Império não se tivesse tornado cristão, Júpiter e os outros deuses de Roma o teriam salvo da destruição. Acrescentavam ainda que o Deus dos cristãos não era nenhum deus, pois não os havia poupado dos bárbaros.
Santo Agostinho escreveu o livro “A Cidade de Deus” para defender a Igreja e fortalecer a fé nos corações. Nessa sua obra-prima ele explica o motivo dos castigos coletivos. Seu raciocínio pode ser resumido da seguinte forma:
1 — Como as nações como tais não passam para a vida eterna, elas são recompensadas ou castigadas nesta vida pelo bem ou pelo mal que praticam. Os bons e os maus sentem os efeitos da recompensa e do castigo.11
2 — Quanto aos bons, o castigo purifica neles o amor a Deus. Pode até levá-los das tribulações desta vida para a vida eternamente feliz do Céu. “Os bons têm ainda outra razão para sofrer os males temporais. É a mesma de Job: que o homem submeta o seu próprio espírito à prova, e comprove e conheça com que grau de piedade e com que desinteresse ama a Deus”.12
3 — Por outro lado, com frequência os bons são justamente castigados pelo egoísmo, falta de coragem e de zelo apostólico, que os impede de apontar para os maus o desacerto de seus caminhos: “Receiam pôr em perigo e perder a sua integridade e reputação, […] se comprazem nas adulações e temem a opinião pública, os tormentos da carne ou da morte, isto é, por causa dos grilhões de certas paixões e não por causa do dever de caridade”.13
4 — Quanto aos maus, eles são castigados pela “divina Providência que costuma, com guerras, purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens”.14
Este é também o ensinamento de Santo Tomás, que afirma: “Justiça e misericórdia aparecem no castigo dos justos neste mundo, uma vez que pelas aflições são limpos de falhas menores, e eles são mais elevados das afeições terrenas a Deus. Da mesma forma, São Gregório diz: ‘Os males que nos pressionam neste mundo nos forçam a ir a Deus’”.15
Nossa Senhora de Fátima: uma advertência profética e maternal
Em 1917, Maria Santíssima apareceu em Fátima para advertir que, se o mundo não se convertesse e não fizesse penitência, seria castigado: “Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida, sabei que é o grande sinal que Deus vos dá de que vai punir o mundo de seus crimes, por meio da guerra, da fome e de perseguições à Igreja e ao Santo Padre. […] Espalhará [a Rússia] seus erros pelo mundo […]; os bons serão martirizados, […] várias nações serão aniquiladas”.16
Independentemente de as causas da pandemia de coronavírus serem naturais ou provocadas pelo homem, não podemos excluir os sábios e insondáveis desígnios da Divina Providência. Pelo contrário, por todas as razões expostas acima, e de maneira particular pela mensagem de Nossa Senhora em Fátima, parece-nos que a prudência exige que consideremos com seriedade a possibilidade de que Deus esteja nos advertindo de nossas falhas e nos conclamando ao arrependimento.
Deus não quer a morte do pecador, mas a sua conversão.17 No entanto, se o mundo não atender ao chamado de conversão de Nossa Senhora, não ficaremos surpresos se tragédias ainda piores afligirem o mundo — a aniquilação de nações inteiras, por exemplo, como mencionado por Ela em Fátima.
Seja qual for o futuro que nos é reservado, devemos sempre lembrar que Nossa Senhora também predisse em Fátima a conversão definitiva da humanidade e sua vitória: “Por fim, meu Imaculado Coração triunfará!”.
Que a série de catástrofes que caíram sobre o nosso País e o mundo nos ajude a levar a sério o chamado maternal de conversão feito por Nossa Senhora, pois existe esta promessa divina: “Sê fiel até a morte, e te darei a coroa da vida” (Apoc. 2, 10).
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Notas:
* Fonte: Revista Catolicismo, Nº 835, Julho/2020.
* Este artigo encontra-se disponível em inglês no link: https://www.tfp.org/is-the-voice-of-god-resounding-in-the-present-pandemic/
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