Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
11 min — há 6 anos — Atualizado em: 3/18/2019, 7:23:49 AM
A verdade da filiação divina em Cristo, que é intrinsecamente sobrenatural, é a síntese de toda a revelação divina. A filiação divina é sempre um dom gratuito da graça, o dom mais sublime de Deus para a humanidade. No entanto esse dom é obtido somente através da fé pessoal em Cristo e da recepção do batismo, como o próprio Senhor ensinou: “Em verdade, em verdade vos digo: se alguém não nasce da água e do espírito, não pode entrar no Reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do espírito é espírito. Não vos surpreendais por eu ter dito que deveis nascer de novo” (João 3, 5-7).
Nas décadas passadas, ouviam-se muitas vezes, mesmo da boca de alguns representantes da hierarquia da Igreja, declarações sobre a teoria dos “cristãos anônimos”. Essa teoria diz o seguinte: a missão da Igreja no mundo consistiria, em última análise, em suscitar em cada homem a consciência de que deve ter a sua salvação em Cristo, e portanto em sua filiação divina, posto que, de acordo com a mesma teoria, cada ser humano já teria a filiação divina na profundidade de sua pessoa. Contudo, tal teoria contradiz diretamente a revelação divina tal como Cristo a ensinou e como seus apóstolos e a Igreja sempre a transmitiram por dois mil anos, de forma imutável e sem sombra de dúvida.
Em seu ensaio Die Kirche aus Juden und Heiden (A Igreja proveniente dos judeus e gentios), o conhecido convertido e exegeta Erik Peterson alertou em 1933 contra o perigo de tal teoria, afirmando que não se pode reduzir o ser cristão (Christsein) à ordem natural, na qual os frutos da redenção operada por Jesus Cristo seriam geralmente atribuídos a cada ser humano como uma espécie de herança, simplesmente porque compartilham a natureza humana com o Verbo Encarnado. Pelo contrário, a filiação divina não é um resultado automático, garantido pelo fato de pertencer à espécie humana.
Santo Atanásio (cf. Discurso contra os Arianos [Oratio contra Arianos], II, 59) nos deixou uma explicação simples e ao mesmo tempo precisa da diferença entre o estado natural dos homens como criaturas de Deus e a glória de serem filhos de Deus em Cristo. Desenvolve seu pensamento a partir das palavras do Evangelho de São João, que diz: “Ele deu poder para se tornarem filhos de Deus àqueles que creem em seu nome, que foram gerados não pelo sangue, nem pela vontade da carne, nem pelo desejo do homem, mas por Deus” (João 1, 12-13).
São João usa a expressão “foram gerados” para dizer que o homem se torna o filho de Deus não por natureza, mas por adoção. Este fato mostra o amor de Deus, pois quem é o Criador também se torna pai. Isso acontece, como diz o Apóstolo, quando os homens recebem em seus corações o Espírito do Filho encarnado que chora neles, “Abba, Pai!”. Santo Atanásio continua sua reflexão dizendo que, como seres criados, os homens podem se tornar filhos de Deus exclusivamente através da fé e do batismo, recebendo o Espírito do verdadeiro e natural Filho de Deus. Precisamente por essa razão, o Verbo se fez carne para tornar os homens capazes de adoção filial e participação na natureza divina. Portanto, estritamente falando, por natureza Deus não é o Pai dos seres humanos. Somente aquele que conscientemente aceita Cristo e é batizado será capaz de bradar em verdade: “Abba, Pai!”(Rom. 8, 15; Gal. 4, 6).
Desde o início da Igreja isso era afirmado, como testifica Tertuliano: “Os homens se tornam cristãos, não nascem cristãos” (Apol. 18, 5). E São Cipriano de Cartago formulou a mesma verdade, dizendo: “Não pode ter Deus como Pai quem não tem a Igreja como Mãe” (De Unit., 6).
A tarefa mais urgente da Igreja em nossos dias consiste em nos ocuparmos com a mudança do clima espiritual e do clima de migração espiritual. Do clima de não-fé em Jesus Cristo, e de rejeição à realeza de Cristo, se deve produzir uma mudança para um clima de fé explícita em Jesus Cristo e aceitação de Sua realeza. Os homens devem migrar da miséria do cativeiro espiritual da não-fé para a felicidade de serem filhos de Deus; e da vida em pecado, migrar para o estado da graça santificante. Estes são os migrantes com os quais devemos lidar urgentemente.
O cristianismo é a única religião desejada por Deus, portanto nunca pode ser colocado de maneira complementar junto com outras religiões. Violaria a verdade da Revelação Divina quem apoiasse a tese de que Deus desejaria a diversidade das religiões, ao contrário do que é inequivocamente afirmado no primeiro mandamento do Decálogo. De acordo com a vontade de Cristo, a fé n’Ele e em seu ensinamento divino deve substituir outras religiões; porém, não pela força, mas com uma persuasão amorosa, como indica o hino de Louvor (Laudes) da festa de Cristo Rei: “Non Ille regno gladibus, non vi metuque subdidit: alto levatus stipite, amore traxit omnia” (Não pela espada, pela força e pelo medo que sujeita os povos, mas que exaltado na Cruz atrai amorosamente todas as coisas para Si).
Existe apenas um caminho para Deus, e este é Jesus Cristo, porque Ele mesmo disse: “Eu sou o caminho” (João 14, 6). Há apenas uma verdade, e esta é Jesus Cristo, porque Ele mesmo disse: “Eu sou a verdade” (João 14, 6). Há apenas uma vida verdadeiramente sobrenatural, e esta é Jesus Cristo, porque Ele mesmo disse: “Eu sou a vida” (João 14, 6).
O Filho de Deus Encarnado ensinou que fora da fé n’Ele não pode haver uma verdadeira religião que agrade a Deus: “Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo” (João 10, 9). Mandou todos os homens, sem exceção, ouvir o seu Filho: “Este é o meu amado filho: escutai-o!” (Marcos 9, 7). Portanto, o que Deus disse não foi: “Podeis ouvir meu Filho ou outros fundadores de religiões, pois é minha vontade que haja diferentes religiões”.
Deus proibiu reconhecer a legitimidade da religião de outros deuses: “Não terás outro deus diante de mim” (Êxodo 20, 3). “Que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Belial? Que colaboração entre crente e não crente? Que acordo entre o templo de Deus e os ídolos?” (2 Cor. 6, 14-16).
Se as outras religiões correspondessem igualmente à vontade de Deus, não haveria condenação divina ao culto do bezerro de ouro no tempo de Moisés (ver Êxodo 32, 4-20). Se assim fosse, os cristãos de hoje poderiam praticar impunemente a religião de um novo bezerro de ouro, já que todas as religiões, de acordo com essa teoria, seriam igualmente agradáveis a Deus.
Deus deu aos apóstolos — e através deles à Igreja, para todos os tempos — a solene ordem de ensinar a todas as nações e seguidores de todas as religiões a única fé verdadeira, ensinando-os a observar todos os seus mandamentos divinos e batizá-los (Mateus 28, 19-20). Desde o início da pregação dos apóstolos e do primeiro Papa (São Pedro), a Igreja proclamou que a salvação não tem outro nome. Ou seja, não há sob o céu outra fé, outro nome pelo qual os homens podem ser salvos (cf. Atos 4, 12).
Nas palavras de Santo Agostinho, a Igreja ensinou em todos os momentos: “Somente a religião cristã indica o caminho aberto a todos para a salvação da alma. Sem ela nenhuma alma se salvará. Esta é a via régia, pois somente ela conduz, não a um reinado vacilante para a altura terrena, mas a um reino duradouro na eternidade estável” (De Civitate Dei, 10, 32, 1).
As seguintes palavras do Papa Leão XIII testemunham o mesmo ensinamento imutável do Magistério em todos os momentos: “O grande erro moderno do indiferentismo religioso e da igualdade de todos os cultos é o caminho oportuníssimo para aniquilar todas as religiões, e em particular a Igreja Católica. Sendo a única verdadeira, ela não pode, sem enorme injustiça, ser colocada em pé de igualdade com as demais” (Encíclica Humanum Genus, nº 16).
Nos últimos tempos, o Magistério apresentou substancialmente o mesmo ensinamento imutável no documento Dominus Jesus (6 de agosto de 2000), do qual transcrevemos algumas declarações relevantes:
“Amiúde se identifica a fé teológica, que é a recepção da verdade revelada por Deus uno e trino, e a crença em outras religiões, que é uma experiência religiosa ainda em busca da verdade absoluta e ainda privada do acesso a Deus que se revela. Esta é uma das razões pelas quais se tende a reduzir, às vezes até cancelar, as diferenças entre o cristianismo e outras religiões” (nº 7).
“Seriam contrárias à fé cristã e católica essas propostas de solução que contemplam uma ação salvífica de Deus fora da única mediação de Cristo” (nº 14).
“Não raro se propõe evitar na teologia termos como ‘unidade’, ‘universalidade’, ‘absoluto’, cujo uso daria a impressão de uma ênfase excessiva no significado e valor do evento salvífico de Jesus Cristo em relação a outras religiões. Na realidade, esta linguagem expressa simplesmente a fidelidade ao dado revelado” (nº 15).
“Seria contrário à fé católica considerar a Igreja como um caminho de salvação junto com aqueles constituídos por outras religiões, que seriam complementares à Igreja, de fato substancialmente equivalentes a ela, embora convergindo com isso para o Reino escatológico de Deus” (nº 21).
“A verdade da fé exclui radicalmente essa mentalidade de indiferença”, marcada por um relativismo religioso que leva à crença de que “uma religião é a mesma que a outra” (João Paulo II, Encíclica Redemptoris Missio, 36) (nº 22).
Os apóstolos e os incontáveis mártires cristãos de todos os tempos, especialmente os dos três primeiros séculos, teriam evitado o martírio se tivessem dito: “A religião pagã e seu culto é algo que também corresponde à vontade de Deus”. Não teria havido, por exemplo, uma França cristã (“a primogênita da Igreja”), se São Remígio tivesse dito a Clóvis, rei dos francos: “Não deves abandonar tua religião pagã; podes praticar a religião de Cristo com tua religião pagã”. De fato, o santo bispo falou de maneira diferente, embora de forma bastante rigorosa: “Adora o que queimaste e queima o que adoraste!”.
A verdadeira fraternidade universal só pode existir em Cristo, isto é, entre os batizados. A plena glória da filiação divina só será alcançada na visão bem-aventurada de Deus no céu, como ensina a Sagrada Escritura: “Veja que grande amor o Pai nos deu para sermos chamados filhos de Deus, e nós o somos de fato! É por isso que o mundo não nos conhece: porque não O conhece. Queridos, somos filhos de Deus a partir de agora, mas ainda não foi revelado o que vamos ser. Sabemos, no entanto, que quando se manifestar, seremos como Ele, porque O veremos como Ele é” (1 João 3, 1-2).
Nenhuma autoridade na Terra — nem mesmo a autoridade suprema da Igreja — tem o direito de conceder a qualquer seguidor de outra religião a isenção da fé explícita em Jesus Cristo, isto é, no Filho encarnado de Deus, único Redentor dos homens; e também não tem o direito de assegurar-lhes que as diferentes religiões são desejadas pelo próprio Deus. Ao contrário, permanecem indeléveis as palavras do Filho de Deus, porque estão escritas com o dedo de Deus e são cristalinas em seu sentido: “Quem acredita no Filho de Deus não é condenado, mas quem não crê já foi condenado, porque não creu no nome do unigênito Filho de Deus” (João 3:18).
Algumas pessoas na Igreja de nosso tempo — tão instáveis, covardes, sensacionalistas e conformistas — reinterpretam essa verdade num sentido contrário ao teor das palavras, colocam esta reinterpretação como continuidade no desenvolvimento da doutrina. Mas esta verdade foi válida até agora em todas as gerações cristãs, e assim permanecerá até o fim dos tempos. Fora da fé cristã, nenhuma outra religião pode ser um verdadeiro caminho e amada por Deus, porque esta é a vontade explícita de Deus: “Esta é realmente a vontade de meu Pai: todo aquele que conhece o Filho e crê n’Ele tenha vida eterna” (João 6, 40).
Fora da fé cristã, nenhuma outra religião é capaz de transmitir a verdadeira vida sobrenatural, de acordo com a oração que o próprio Cristo dirigiu ao Pai: “A vida eterna consiste em que conheçam a Ti, único e verdadeiro Deus, e a Jesus Cristo como aquele que enviaste” (João 17, 3).
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* Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Maria Santíssima em Astana (Cazaquistão).
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 819, Março/2019.
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