De repente, como um tornado que varre uma cidade e destrói todas as casas, irromperam shoppings a dentro os rolezinhos. Tomaram ademais as páginas dos jornais, os programas de televisão e transbordaram para a Internet; não se falava de outra coisa.
Como fenômeno de opinião pública foi uma novidade, e bem grande, bem inesperada, e mesmo ameaçadora. Noticiaram-se roubos, depredações do comércio, ameaças a lojistas e compradores em São Paulo, Rio, Recife e por todo o Brasil. A esquerda radical logo se mobilizou a favor dos rolezinhos. E a ministra Luiza Bairros (PT) acusou a polícia e os frequentadores de shoppings de discriminar jovens negros nos rolezinhos.
O susto foi grande, os donos de shoppings correram à Justiça para obter liminares, as lojas fecharam e a polícia se mobilizou. A população se assustou a tal ponto, que uma pesquisa de opinião apontou 82% contra os rolezinhos, rejeitados em todas as camadas da população. É a esquerda, dizia-se, com sua maldita luta de classes.
Alguns dias depois, o panorama estava mudado. Uma fada com sua varinha mágica passara pelos rolezinhos e os tocara, obtendo uma transformação rápida e profunda. Eles passaram a ser pobres jovens da periferia que apenas queriam passear um pouco dentro dos shoppings, olhar as vitrines, cantar e dançar ao som do funk e do rap.
Por sua vez, o caráter pretensamente espontâneo do movimento cedeu lugar ao surgimento de uma organização com líderes que, em acordo com os donos shoppings centers, propuseram-se a limitar o número dos rolezinhos e moderá-los. Fizeram até uma reunião com a associação de shoppings, intermediada por um promotor de Justiça, com o objetivo de evitar tumultos, marcar somente encontros menores em shoppings; e se propuseram a participar de uma reunião com as secretarias municipal e estadual da Cultura e da Segurança.
Segundo o secretário da Igualdade Racial em São Paulo, Netinho de Paula (PC do B), os jovens querem ter relação tranquila com os shoppings. O presidente da Abrasce (associação de shoppings) se mostrou esperançoso: “daqui para a frente, tentaremos fazer com que tudo isso, que criou tanta celeuma, passe a ser apenas mais uma atividade cultural”.
Convenhamos, tudo isso soa muito artificial!
Depois das tentativas fracassadas de forçar uma revolução social no Brasil através da luta de classes, utilizando o MST e congêneres para invasões de terras e de casas, e também os quilombolas e até os índios, chegou a vez dos rolezinhos. Só que, com eles, a tática mudou.
Lançados de repente no mercado propagandístico com “bombos y platillos”, como dizem pitorescamente nossos amigos hispânicos, sua ação correspondeu ao binômio susto-distensão. Primeiro um grande susto: os templos da burguesia invadidos por novos bárbaros, vindos dos confins das cidades, impedindo o culto das “deusas” pagãs da superficialidade, da última moda, do exibicionismo, do quase nudismo etc.
A palavra de ordem inicial: é preciso combater esses vândalos, impedi-los de tomar nossas cidades e derrubar nossos deuses: “aux armes, citoyens”. Quando tudo caminhava para a batalha, incruenta é verdade, mas verdadeira batalha, eis que o inimigo se põe a sorrir, estende a mão e usa a palavra mágica que abre todas as portas: diálogo.
O burguês decadente – que é pachorrento e não quer senão sossego para gozar a vida –, tomado de uma agradável surpresa, esboça um sorriso melado e estende pressurosamente sua mão macia e invertebrada. Começam os afagos mútuos. Adorador do diálogo e do ecumenismo como forma infalível para resolver todos os problemas sem precisar recorrer aos princípios nem à luta, o burguês se distende. Afinal, vai poder reimergir na sonolência e na letargia.
Ele não percebe que perdeu a partida. Os rolezinhos – ou quem quer os manipule – já se sentem admitidos aos shoppings como coisa normal, com suas correrias e seus funks, apenas com certa regulamentação, que vigorará enquanto eles quiserem.
Mas são só os rolezinhos? Não. A manobra é muito mais vasta. Deixando de lado a luta de classes, tenta-se agora uma mistura das classes.
Mas não é a boa e sã convivência entre classes diferentes, em que os valores das classes superiores vão filtrando organicamente para as classes inferiores, as quais gozam da proteção e do incentivo daquelas; em que alguns dos membros mais dinâmicos e empreendedores dentre os menos favorecidos ascendem na escala social, do mesmo modo como os mais relapsos e acomodados das classes superiores decaem para as inferiores. Nada há de estanque ou de casta intocável. Tudo é regido pela organicidade, pela caridade, pela justiça e pela religião numa sociedade retamente ordenada.
Ensina Plinio Corrêa de Oliveira que “numa sociedade orgânica bem constituída, deve haver uma diversidade hierárquica e harmônica de classes sociais, um intercâmbio de ajuda e de serviço entre elas. Todas devem ser atendidas em suas necessidades para que possam viver segundo sua posição na escala social.[…] a Igreja, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo, tem por dever, por missão, favorecer todo o conjunto social e não apenas uma classe, seja ela qual for”. (Catolicismo, n° 520, abril/1994).
Porém, a mistura atual de que estamos falando nada tem dessa sanidade social. Ela implica uma degradação humana e cultural das classes superiores, enquanto as inferiores crescem apenas do ponto de vista econômico. Não vendo mais nas classes superiores quem as inspire e eleve, impõem sua subcultura, hoje em dia proveniente de tubas internacionais, carregadas de cacofonia e imoralidade, quando não de satanismo.
Não é mais a luta de classes, mas a mistura de classes. É o ideal igualitário do comunismo somado à revolução cultural da Sorbonne; o todo dentro de um caldo de cultura sem família, sem propriedade, sem tradição e sem Deus.
Essa fase revolucionária já foi prevista por Plinio Corrêa de Oliveira: “É um erro supor que a única forma de ‘questão social’ é a luta entre classes. A corrupção dos costumes públicos e privados a dissolução de todos os organismos que constituem a contextura social, a decadência da família, dos órgãos profissionais, das classes sociais, da probidade comercial, das artes, tudo isto pode constituir uma ‘questão social’ monstro, que leve a sociedade à ruína. E uma questão social deste tipo pode existir, medrar, levar aos mais trágicos desfechos, sem que entre as classes componentes do organismo social haja luta ou rivalidade”. (“Legionário”, nº 754, 19-1-1947)
Não estamos querendo descrever toda a transformação social que ocorre no Brasil de hoje, nem de longe. Seria preciso imprimir vários volumes para tentar essa tarefa. Estamos salientando apenas um ponto capital dentro dessa transformação, que é preciso ter em vista para entender o que vai ocorrendo.
A revista Veja (29-1-14) publica matéria de capa sobre a “invasão” das periferias que vem ocorrendo nas grandes cidades, especialmente São Paulo e Rio. Dedicamos todo este item e o seguinte para reproduzir alguns tópicos dessa extensa reportagem.
Os rolezinhos compõem a face mais visível de um país que existe dentro do Brasil, habitado pelas classes C, D e E. Seus componentes estão se afirmando e misturam-se já com as classes rica e média. Constituem “um contingente de 155 milhões de pessoas que vem se consolidando como um gigantesco exército de consumidores”
Para o cientista político Rudá Ricci, tais classes “estão conseguindo gastar com supérfluos, viajar de avião, ter um smartphone. Os meninos do rolezinho são filhos dessa geração que deixou a miséria para trás e se inseriu na sociedade por meio do consumo.”
Prossegue a revista mostrando que muito desse progresso material convive com problemas: “em 2012, 3,2 milhões de domicílios das classes C, D e E não tinham água encanada; 9,2 milhões seguiam sem coleta de lixo e 19,4 milhões sem coleta de esgoto. Vive-se na periferia o paradoxo de ter um celular de última geração e ser obrigado a carregar uma lata d’água na cabeça”.
Essa mistura de classes, chamemo-la assim, é maior no Rio do que em São Paulo, pois, explica o sociólogo Marcelo Burgos, da PUC-RJ, “a geografia carioca põe a periferia no meio da cidade, aproximando, como em nenhum outro lugar do país, as diferentes camadas sociais […] Elas frequentam a mesma praia. A cultura dos morros transborda para o asfalto, e os desejos de consumo da Zona Sul são aspirados e copiados nas favelas. Há uma simbiose.”
Para o presidente do Data Popular, Renato Meirelles, “o jovem dessa classe emergente não está interessado no que Lula ou FHC fizeram; quer um político que melhore as condições de vida dele”
Segundo levantamento da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) realizado em 2012, 56% do público de classe C declarou ir àqueles centros de compras uma vez por semana (na classe A, foram 70%).
Não há luta de classes, mas sim uma mistura de classes: “Quando cantam funk pelos corredores dos shoppings, os jovens rolezeiros filhos dessa classe social expandida podem estar querendo apenas se divertir — e não fazer das músicas hinos de protesto contra algo como a má distribuição de renda”.
Com a decadência cultural das classes mais elevadas, a pseudo-cultura do funk vai se tornando o denominador comum. “As letras entoadas são, muitas vezes, grosseiras, feias”. Dos dez nomes mais buscados no Google em 2013 três são de funkeiros. O “efeito smartphone” só cresce. Uma pesquisa feita com jovens de 15 a 24 anos de áreas paulistanas pobres mostrou que esses dispositivos são o item de consumo mais desejado por eles.
São 2 horas da manhã numa casa noturna de São Paulo e os frequentadores estão dançando uma batida eletrônica repetitiva. No clube vigora uma mistura social. Encontram-se ali jovens de bairros suburbanos e também os chamados “playboys”. Festas e shows assim se repetem por outras cidades e clubes. Como tantos gêneros musicais que vieram das áreas urbanas mais pobres, o funk já conquistou parte da classe média.
A “comunidade funk” hoje congrega 10 milhões de brasileiros com mais de 16 anos, a maioria das classes C e D. Há diferenças entre o funk carioca, mais malicioso e sexual (ou mais bandido), e o paulista, que tem mais influência do hip-hop. O chamado “funk ostentação”, que celebra o consumo e o luxo, é um produto paulista. Hoje, o funk ganhou um batuque brasileiro, que parece saído dos terreiros de umbanda. Muitas letras são incontestavelmente grosseiras.
Há ainda “a intersecção do funk com a bandidagem, que vigora sobretudo no Rio. Nos anos 90 surgiram nas favelas os chamados ‘proibidões’, bailes protegidos ou patrocinados por facções criminosas. O ‘proibidão’ tornou-se quase um subgênero do funk, com letras que exaltam criminosos”.
“Hoje o funk reflete a cultura do carioca com muito mais propriedade do que o samba”, diz o empresário Leandro Gomes.
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Tal fenômeno irá adiante? Ou, como tantas experiências revolucionárias do passado, está destinado ao fracasso? Há problemas e percalços não pequenos pelo caminho dessa utopia caótica, igualitária e sorbonniana.
Sobretudo os seus fautores não contam com a promessa de Nossa Senhora feita em Fátima: Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará! Rezemos e lutemos para que este triunfo se dê o quanto antes.
Gregorio Vivanco Lopes
173 artigosAdvogado, formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Autor dos livros "Pastoral da Terra e MST incendeiam o Brasil" e, em colaboração, "A Pretexto do Combate Á Globalização Renasce a Luta de Classes".
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