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10 min — há 14 anos — Atualizado em: 10/9/2018, 9:43:38 PM
“No mínimo, a questão da anencefalia abre o caminho para a eliminação das crianças com outras afecções congênitas letais, pelo chamado efeito ladeira escorregadia”.
Voltou recentemente à pauta do Supremo Tribunal Federal uma “ação de descumprimento de preceito fundamental” (ADPF nº 54/STF), em tramitação há quase sete anos e que visa declarar constitucional a prática do aborto em casos de anencefalia.
Se der provimento a tal “ação”, o STF violará gravemente a Lei de Deus (“Não matarás!”) e o sentimento de milhões de brasileiros, além de abrir as portas para o aborto total e irrestrito em nosso País.
Por essas portas — que o Congresso, dependente do voto popular, ladinamente se esquivou de abrir — passarão depois outras práticas monstruosas, como a eutanásia, a eliminação de portadores de doenças incuráveis, de deficientes físicos, de crianças com outras afecções congênitas letais; e, por fim, até de crianças normais, com o abortamento autorizado em qualquer caso.
Nesse ritmo, o que restará da sociedade brasileira se os próprios “valores inegociáveis”, refletidos na Constituição e por ela assegurados, vierem a ser anulados de um momento para outro pela instância máxima da Justiça?
Assim, devemos lutar por todos os meios legítimos contra a despenalização do aborto do feto anencefálico, pois além de ser um mal em si, ele abre precedente para que outras barbaridades venham a ser praticadas com autorização judicial.
Para tratar desse problema tão relevante da atual conjuntura, Catolicismo se dirigiu a um especialista, o Dr. Rodolfo Acatauassú Nunes, que gentilmente concedeu ao nosso colaborador Diogo Waki a entrevista que segue. O Dr. Rodolfo é professor adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre e Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Livre Docente pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica.
* * *
Catolicismo — O Sr. poderia expor brevemente o que é a anencefalia?
Dr. Rodolfo — A anencefalia – pela etimologia do termo (a = ausência) – é muitas vezes erroneamente considerada como uma afecção caracterizada pela ausência do encéfalo. Na realidade deveria chamar-se meroanencefalia (mero = parte), pois ela acomete parte do encéfalo. A anencefalia é resultante de um defeito de fechamento da parte anterior do chamado tubo neural, estrutura que se forma por volta da terceira semana de desenvolvimento do embrião. Esta falta de fechamento afeta, sobretudo, a porção anterior do encéfalo embrionário que tem três partes: anterior, média e posterior. A parte anterior será futuramente representada pelos hemisférios cerebrais que poderão estar ausentes. Há mais preservação das estruturas médias e, sobretudo, posteriores, que originarão o tronco cerebral e o cerebelo. Em conjunto com a lesão cerebral, há associadamente um defeito da cobertura óssea e couro cabeludo, fazendo com que no lugar da abóbada craniana exista um tecido cérebro-vascular que fica exposto. Admite-se que a falta da proteção proporcionada pela cobertura, exporia os hemisférios cerebrais à lesão pelo líquido amniótico e à pressão intra-uterina.
É importante ressaltar que a anencefalia não equivale à morte encefálica porque somente parte do encéfalo é afetada. Assim, por exemplo, a criança com anencefalia pode respirar e chorar, condições que não acontecem de forma alguma na morte encefálica. Acredita-se que estas crianças possam ter um nível primitivo de consciência, pelo fenômeno da neuroplasticidade (certos neurônios podem fazer o papel de outros), confirmado pelas próprias mães que costumam referir um certo grau de interação com seus filhos. Este assunto da consciência é bastante complexo na anencefalia, principalmente pelo escasso aprofundamento científico do assunto.
Catolicismo — Tramita há anos no Supremo Tribunal Federal o processo visando à aprovação do aborto de anencefálicos. Recentemente o Ministro Marco Aurélio afirmou que colocará tal processo na pauta de votação. Os Ministros do STF já têm suas posições definidas a respeito?
Dr. Rodolfo — Não posso afirmar como serão os votos, mas torna-se seguramente muito importante conhecer os fundamentos científicos sobre a matéria, que nem sempre é do inteiro domínio dos ilustres ministros, que têm sua formação básica na área do Direito. Por isto, tem havido um esforço da CNBB para levar aos senhores ministros uma contribuição proveniente da área das ciências da Saúde, esclarecendo pontos relativamente obscuros, que poderiam levar a uma interpretação equivocada, como aquela que vimos na pergunta anterior.
Catolicismo — O Sr. poderia citar um, ou alguns de seus principais argumentos contrários ao aborto em casos de nascituros portadores de anencefalia?
Dr. Rodolfo — O principal argumento é que constitui objeto absolutamente estranho à prática médica eliminar um ser humano sob a alegação de faltarem condições técnicas para tratar da doença que o aflige. Infelizmente existem doenças congênitas letais e a anencefalia é uma delas. Contudo, provocar deliberadamente a morte destes pequenos pacientes nunca será solução para resolver um problema complexo. Para essas doenças existe todo um tratamento preconizado pela Medicina Paliativa.
Por outro lado, muito se tem avançado na prevenção das doenças de fechamento do tubo neural com a política da ANVISA de adição de ácido fólico às farinhas e os primeiros resultados começam a ser publicados mostrando a redução na taxa desta afecção. Uma dúvida que existe é se esta adição poderia contribuir para o aparecimento de formas menos graves de anencefalia, com maior sobrevida, a exemplo do que em sido registrado com outra doença originada da falha no fechamento do tubo neural, em sua porção posterior, chamada de meningomielocele.
Finalmente, não se deve subestimar o avanço da ciência e, neste ponto, começa a surgir na literatura a possibilidade do emprego da terapia com células-tronco nos defeitos do tubo neural. Talvez, com a melhora das técnicas de Medicina Fetal, possa haver, em futuro relativamente próximo, a possibilidade de terapia intra-útero da anencefalia, naqueles casos que escaparam à prevenção com o uso do ácido fólico no período.
Catolicismo — É comum o trauma da mãe submetida a aborto de filho anencefálico, decorrente do problema de consciência por ter permitido que se matasse seu bebê?
Dr. Rodolfo — É reconhecido que o abortamento pode realmente determinar seqüelas psicológicas e sentimentos de culpa, algumas vezes levando ao suicídio. Acredito que à mãe deveria ser dito, que a criança que ela está gerando tem infelizmente uma doença congênita, no momento sem cura, a qual torna a sobrevida curta, a maioria falecendo nas primeiras 24 horas, mas podendo em alguns casos chegar a mais de um ano. E que tudo será feito para tratar adequadamente desta criança, abrindo a possibilidade de a mãe manifestar todo o seu amor neste curto período de vida. Esta mensagem, aliada a atitudes de solidariedade, diminuiria em muito o sofrimento da mãe e afastaria de vez a falsa solução do aborto.
Catolicismo — Ainda que tais nascituros vivessem apenas alguns dias — ou o tempo que Deus lhes concedesse —, qual a razão do empenho governamental em eliminar os anencefálicos antes de nascerem?
Dr. Rodolfo — Não acredito que haja propriamente um empenho governamental em eliminar estas crianças. O que existe é a pressão por setores da sociedade, que têm uma visão mais utilitarista do ser humano aliada, por vezes, a uma concepção errônea da doença e uma subestimação do avanço da ciência em sua capacidade resolutiva de problemas. De fato, tem havido, desde já há algum tempo, a introdução da impiedosa prática do descarte de seres humanos, aparentemente inúteis, e que representariam uma carga desnecessária àqueles que os produzem. Esta falta de humanidade e de delicadeza no trato com a pessoa humana deve ser vencida pacientemente, com o diálogo e, sobretudo, com o exemplo do bem cuidar. Naturalmente, sem consentir que esta prática desumana seja institucionalizada.
Catolicismo — Muitos abortistas alegam que a gestação de feto com anencefalia acarreta risco de vida para a mãe. Tal alegação é procedente?
Dr. Rodolfo — A gestação de uma criança com anencefalia pode cursar de forma normal ou podem acontecer problemas tais como excesso de líquido amniótico, hipertensão arterial e outros. No entanto, estas afecções podem ser contornadas com tratamento específico, tal como acontece em outras gestações. Naturalmente, estas condições, uma vez reveladas, não impõem a necessidade imediata de interromper a gravidez para salvar a vida da mãe. Todas são, em princípio, susceptíveis de controle.
Catolicismo — A medicina já utiliza algum tratamento para evitar a anencefalia fetal?
Dr. Rodolfo — O uso de ácido fólico no período Peri-concepcional é fundamental. Mulheres que desejam engravidar devem fazer uso do ácido fólico, desde antes da gravidez, pois a má-formação que origina a anencefalia ocorre no primeiro mês de gravidez, quando a mulher muitas vezes não sabe ainda se está grávida. Daí procede a estratégia dos órgãos de Saúde Pública de adicionar ácido fólico às farinhas. Mulheres que têm um histórico anterior de uma criança com defeito de tubo neural devem fazer uso de doses mais elevadas.
Catolicismo — Há casos de diagnósticos de má formação cerebral durante a gestação não obstante os quais os bebês tenham nascido normalmente?
Dr. Rodolfo — Salvo um erro grosseiro, o diagnóstico ultrassonográfico da anencefalia é confiável e dificilmente haverá um resultado falso positivo ou falso negativo.
Catolicismo — Se tal processo for aprovado no STF, não há o risco de posteriormente se desejar a aprovação de outras leis permitindo o aborto de nascituros diagnosticados com outros tipos de doenças? Ou, pior ainda, abrir o caminho para se aprovar uma lei do aborto total, ou seja, em qualquer caso, mesmo de nascituros perfeitamente saudáveis?
Dr. Rodolfo — Este risco existe. No mínimo, a questão da anencefalia abre o caminho para a eliminação das crianças com outras afecções congênitas letais, pelo chamado efeito “ladeira escorregadia”. Aberto o precedente, abre-se o espaço para a eliminação de crianças normais. Por isto, é importante não aceitar, de forma alguma, a introdução da eliminação pela morte para a resolução de uma doença incurável em um dado momento histórico. A história da Medicina mostra, constantemente, médicos declarando doenças incuráveis e sendo desmentidos, pouco tempo depois, pelo próprio avanço da ciência ou pela “ousadia” de outro médico que mostrou uma nova forma de resolver o problema.
Catolicismo — O que o Sr. sugere aos brasileiros contrários ao aborto no sentido de influenciar de algum modo uma decisão do STF que proteja a vida de todos os nascituros, inclusive dos anencefálicos?
Dr. Rodolfo — Em primeiro lugar, informar-se bem e não se deixar levar pela etimologia do termo que conduz a um erro grosseiro de interpretação: “Na anencefalia haveria a falta do encéfalo e conseqüentemente a criança estaria em morte encefálica. E se está em morte encefálica a criança está clinicamente morta e a lei permite até a retirada de órgãos. Por que tanta discussão?”. O principal erro a evitar é a desinformação e é isto que está fazendo o assunto prosperar.
Outra desinformação é a questão da sobrevida. Há quem diga que estas crianças morrem imediatamente após o parto. De fato, a maioria delas morre nas primeiras 24 horas, mas há aquelas que ultrapassam um dia, uma semana, um mês e um ano. Neste aspecto, foi amplamente noticiado o caso da criança brasileira, Marcela de Jesus Ferreira [foto], com anencefalia que viveu por um ano e oito meses. Alguns, que sequer atenderam a criança, chegaram a desqualificar o diagnóstico feito pelos médicos assistentes. Os exames de imagem foram enviados a médicos no exterior, entre os quais o professor Alan Shewmon, da Universidade da Califórnia, especialista em defeitos de tubo neural e todos confirmaram o diagnóstico feito no Brasil.
Desta forma, deve ser argumentado às pessoas em posição-chave do executivo, legislativo e judiciário, que o respeito à vida para com estas crianças — portadoras de uma afecção, no momento incurável — deve ser mantido, através dos cuidados paliativos, enquanto a cura ainda não está disponível. Não admitindo a eliminação dos enfermos, já se está lutando contra a eliminação dos saudáveis.
Revista Catolicismo
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