Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
15 min — há 6 anos
No dia 2 de setembro último o Brasil foi surpreendido por um incêndio que devastou o Museu Nacional. Nesse mesmo edifício histórico, que foi a residência da Família Imperial brasileira, 196 anos antes a Imperatriz D. Leopoldina, em presença do Conselho de Estado, assinou como Regente o decreto de Independência do Brasil. Aquela joia arquitetônica em chamas parecia uma imagem do edifício da Nação, consumido pelas chamas de uma revolução silenciosa mas inexorável, que há décadas exaure as energias vitais do País, liquefaz suas instituições, racha suas relações sociais.
O Brasil nunca atravessou uma crise tão carregada de riscos como a atual — crise ideológica, política, social, cultural, econômica, e sobretudo moral, com profundas repercussões religiosas. Um borrascoso processo vai minando a estabilidade das instituições, degradando a vida pública, gerando nos espíritos perplexidades sem fim. Acentua-se a cada dia mais a desconexão do mundo político, das instituições, da imprensa, e de largas faixas do clero, com relação ao profundo sentir da população. O quadro eleitoral, instável e inesperado, é mais um reflexo do que já foi tachado por alguns como a crise terminal da Nova República.
Após diversas e efêmeras vitórias eleitorais da esquerda, um sobressalto patriótico e salutar da opinião pública veio criar sérios entraves à marcha acelerada rumo a uma hegemonia de poder totalitário que se anunciava. Grandes manifestações de rua, por todo o País, reafirmaram o espírito ordeiro e conservador do brasileiro e sua natural aversão às práticas e ideias ditas progressistas. “Nossa bandeira jamais será vermelha” e “Queremos nosso Brasil de volta” — tornaram-se slogansemblemáticos dessa reação.
Ao final da década de 70, o contexto político do Brasil passou por modificações sensíveis e relevantes. Em plena vigência do regime militar, a Abertura foi animada por uma gradual liberalização, até a inteira democratização do Estado. Tal democratização implicava na eletividade das funções públicas, liberdade de pensamento e de palavra para todas as correntes políticas e ideológicas, e ausência de qualquer ação repressiva estatal.
Pareciam distantes os acontecimentos tumultuosos do início dos anos 60, na era janguista, bem como a agitação terrorista do período 1968-1974, que quase tinham empurrando o País para uma ditadura de cunho socialista.
Crescia aos poucos a convicção de que uma política de entendimento e perdão amainaria as tensões, pacificaria os espíritos e restabeleceria a paz no Brasil. Convicção insuflada, aliás, pelo apoio fervente de esquerdistas de todos os tipos. Aprovou-se nesse clima a anistia para os presos políticos, e os exilados retornaram. A Abertura se tornou assim total, ou quase tanto. Mas a esquerda tumultuosa, bafejada por uma eficaz publicidade, tornou-se reivindicante e agressiva, operando em seu favor uma metamorfose do processo de Abertura. Os subversivos ou terroristas de outrora passaram a ocupar gradativamente o lugar de heróis, enquanto proliferava o fenômeno propagandístico do anti-anticomunismo.
As correntes inspiradas pelo comunismo internacional, gozavam de escassa influência na opinião pública, entrando por isso em cena certas personalidades da Hierarquia eclesiástica, mais precisamente da CNBB, afins ao “esquerdismo católico”. Dedicaram-se elas a prestigiar a ofensiva esquerdista durante o processo de Abertura. Deste modo o processo se transviava, e como num passe de mágica a massa do País ia sendo conduzida para um rumo que uma minoria queria impor-lhe. Enquanto isso a população era iludida com a imagem propagandeada de “povo soberano”, como nas campanhas ao estilo das Diretas Já.
O processo de Abertura culminou em 1985 com a saída do General João Baptista Figueiredo da Presidência, substituído em eleição indireta por Tancredo Neves, com cuja presidência a Nova República deveria iniciar-se. Mas, num mau presságio, Tancredo adoeceu antes de assumir o cargo e faleceu semanas depois, sendo substituído por José Sarney.
Tentou criar-se no País um clima de euforia em torno da Nova República, em que cada indivíduo teria a liberdade de pensar, falar, agir e mover-se a seu bel-prazer. Essa liberdade parecia trazer no seu bojo a solução de todos os problemas. Mas, como em todas as liberalizações de contornos indefinidos, criava-se um ambiente em que mentalidades e costumes eram empurrados para uma anarquia social e política.
Nesse quadro psicológico e político eufórico e incongruente, surgiram as articulações para uma nova Constituição. O povo foi convocado a escolher, no dia 15 de novembro de 1986, uma Assembleia Nacional Constituinte, que funcionaria também como Congresso Nacional (Câmara e Senado). Concomitantemente foram eleitos Governadores e Assembleias Estaduais. O Brasil teria assim, como ápice institucional e jurídico, um novo texto constitucional. Em que medida tal texto representaria os verdadeiros anseios do povo brasileiro?
Naquele final de década, a Rússia experimentava o fracasso econômico do Estado comunista, invasor e monopolista, assim reconhecido por seu então dirigente máximo Mikhail Gorbachev. Ademais, o então Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em um documento sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, dizia não se poder desconhecer “esta vergonha de nosso tempo”, ou seja, os “regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos”, em nome da libertação do povo, mas que mantinham “nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem”.
Neste preciso momento, em que fracassava o socialismo de Estado, optaria o Brasil por um caminho que conduziria ao totalitarismo vermelho absoluto?
Em face das diversas circunstâncias que ameaçavam a autenticidade da projetada Constituição, pareceu a Plinio Corrêa de Oliveira, Presidente da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), chegado o momento de empreender um esforço visando encontrar uma faixa de viabilidade para tal Assembleia, a fim de evitar ao País um dédalo de complicações, provavelmente fatais para a boa ordem, o desenvolvimento e até a soberania nacional.
Legitimidade e competência para isso, a TFP e seu presidente a possuíam amplamente, pois desde a fundação da entidade, em 1960, haviam participado ativamente dos debates ideológicos que marcaram a fundo o País, sem nunca se imiscuir nas disputas partidárias. Não haviam pedido a abertura política, como também não a tinham combatido, aceitando-a como um fato. Em diversos pronunciamentos públicos, geralmente feitos em nome individual, o Prof. Plinio empenhou-se em colaborar com a nova ordem de coisas, apresentando sugestões ante os riscos que a abertura trazia e as vantagens que dela poderia auferir o País.
Na esteira dessa posição serena e imparcial, quando os trabalhos da Assembleia Constituinte estavam avançados, decidiu ele elaborar um estudo sobre o assunto, que recebeu o título Projeto de Constituição angustia o País.* Historiou a gênese da Constituinte, analisou seus trabalhos e apontou o impasse a que se chegara. Propôs ainda uma solução concreta, serena e equilibrada, dentro da lei e sem traumas.
No livro Projeto de Constituição angustia o País, Plinio Corrêa de Oliveira analisou o caudaloso Projeto de Constituição e ressaltou os principais pontos em que este feria os princípios da Civilização Cristã. Apresentou em seguida um apelo aos constituintes e à opinião pública, para que fossem freados os rumos dos trabalhos da Constituinte. Na nota introdutória, afirmou que, votada e promulgada a Constituição como se encontrava, é provável que “o Brasil inicie, bom grado, mau grado, uma nova etapa de sua História, na qual a caminhada para a esquerda se tornará compulsória, acelerada, e queira Deus que não irreversível”.
Fartamente documentada, a obra veio a lume no dia 13 de outubro de 1987, 70º aniversário da última aparição de Nossa Senhora de Fátima. Foi publicado como edição especial de Catolicismo e amplamente divulgado pela TFP em campanha de rua, atingindo a tiragem de 73 mil exemplares.
A voz acauteladora e clarividente do Presidente do Conselho Nacional da TFP alçava-se contra um Projeto de Constituição que se afirmava democrático e zeloso da unidade do País, mas de fato atribuía às tribos indígenas a condição de uma aristocracia privilegiada no conjunto brasileiro; expunha a risco a coesão nacional, indispondo umas etnias contra outras; conferia a grupos aborígines uma autonomia mais ampla que a das populações brancas ou miscigenadas das Unidades da Federação; abria campo para terrível luta entre as classes socioeconômicas.
Plinio Corrêa de Oliveira denunciava ainda um Projeto de Constituição que era apresentado como liberal e respeitador dos legítimos direitos individuais, mas mutilava perigosamente a família; golpeava a fundo a propriedade privada; cerceava a livre iniciativa, condição indispensável ao progresso social e econômico; implantava uma drástica Reforma Agrária de cunho socialista e confiscatório, que conduziria à favelização do campo; implantaria uma Reforma Urbana, resultando em tumultuar a vida nas cidades; criaria para o atendimento médico uma gigantesca burocracia estatal; e transformaria o Estado brasileiro em tirano autoritário, com as garras cravadas em todas as legítimas liberdades no País.
O espaço deste artigo não permite uma exposição detalhada dos aspectos jurídicos da obra de Plinio Corrêa de Oliveira, campo em que exibe enorme discernimento e acurada previsão. Chamaremos a atenção do leitor para apenas alguns aspectos políticos que ganham especial realce no momento que atravessa o País.
Um dos principais pressupostos para a autenticidade em um regime democrático representativo é o eleitorado ter efetivamente opinião. Em qualquer pleito, torna-se necessária uma preparação remota e próxima da opinião pública, devendo os partidos, grupos, instituições e meios de comunicação mantê-la informada. Ora, na eleição de 15 de novembro de 1986 o despreparo do eleitorado era tão acentuado, que boa parte da população nem sequer sabia o que era uma constituinte. Por outro lado, a propaganda eleitoral, com sua quase absoluta falta de ideias e programas, não propiciava elementos para o eleitor formular bem seu voto.
Tinha-se assim um Congresso constituído de candidatos eleitos sem autêntica representatividade, vazio de conteúdo, de significado e de atribuições. Por este motivo, faltava à Constituinte legitimidade para inscrever na Carta Magna o pensamento autêntico da nação: “Analistas políticos e personalidades dos mais diversos e até opostos setores do espectro religioso, político e social são concordes em assinalar a grave falta de representatividade da atual Constituinte, o que não deixa de repercutir em sua legitimidade”, ressaltava Plinio Corrêa de Oliveira.
Para essa falta de representatividade contribuiu também o funcionamento tumultuado e anômalo da Constituinte. A esquerda, minoritária, tomara de assalto os postos-chave nas subcomissões e comissões temáticas, fazendo prevalecer propostas que refletiam seus pontos de vista, em desacordo com o sentir da maioria da população. O Prof. Plinio apontou também essa fonte de inautenticidade:
“A leitura do Projeto de Constituição apresentado pela Comissão de Sistematização para discussão em Plenário levanta inevitavelmente a pergunta sobre a fonte de inspiração de tantos dispositivos discrepantes dos princípios e das tradições da civilização cristã. A resposta se poderá encontrar no fato de haverem os seus propositores singrado largamente pelos mares de um utopismo revolucionário e sonhador, com vistas a aplicar ao Brasil de hoje, com as desigualdades inerentes à sua organização social e econômica baseada na propriedade individual e na livre iniciativa, a trilogia ‘liberdade – igualdade – fraternidade’, que a Revolução de 1789 impôs com furiosa radicalidade e mão de ferro à França de Luís XVI”.
Não foram poucos os analistas que evocaram a presença do ambiente ideológico e do espírito da Revolução Francesa de 1789 nos trabalhos da Constituinte.
Plinio Corrêa de Oliveira considerava necessário buscar uma solução saneadora que preservasse o Brasil de ser obrigado a aceitar uma Constituição a qual pusesse em grave risco a própria tranquilidade interna do País. Sugeriu na obra que os Constituintes votassem um texto dispondo apenas sobre os temas relativos aos poderes públicos, sua estrutura, seus fins, o sistema de escolha dos seus titulares, a delimitação das respectivas atribuições, e assuntos conexos. Nessas matérias reinava na opinião pública amplo consenso, não rompido pelo desacordo em alguns pontos específicos — por exemplo, a escolha entre presidencialismo ou parlamentarismo.
Propôs ainda o Prof. Plinio que fosse deixada a parte socioeconômica para nova Assembleia, a ser eleita com poderes constituintes três ou mais anos depois. Uma preparação eficaz, com esforço publicitário informativo e formativo de alto quilate e fácil compreensão, permitiria ao eleitorado opinar maduramente sobre tais assuntos. Acrescentava ainda que tanto a parte política quanto a parte socioeconômica da Constituição fossem submetidas a referendo popular, logo após serem elaboradas e promulgadas. Suas ponderações não poderiam ser mais lógicas e sensatas:
“Se ela se restringir a legislar sobre a matéria política, terá disposto sobre aspectos essenciais da vida pública do País. E ao mesmo tempo terá evitado, sábia e patrioticamente, de penetrar em campos nos quais ela declararia de modo nobre não ser suficientemente representativa do pensamento do eleitorado”.
Plinio Corrêa de Oliveira também alertava:
“Se tal não ocorrer, convém insistir em que o divórcio entre o País legal e o País real será inevitável. Criar-se-á então uma daquelas situações históricas dramáticas, nas quais a massa da Nação sai de dentro do Estado, e o Estado vive (se é que para ele isto é viver) vazio de conteúdo autenticamente nacional.
“Em outros termos, quando as leis fundamentais que modelam as estruturas e regem a vida de um Estado e de uma sociedade deixam de ter uma sincronia profunda e vital com os ideais, os anelos e os modos de ser da nação, tudo caminha nesta para o imprevisto. Até para a violência, em circunstâncias inopinadas e catastróficas, sempre possíveis em situações de desacordo, de paixão e de confusão.
“Para onde caminha assim a nação? Para o imprevisível. Por vezes, para soluções sábias e orgânicas que seus dirigentes souberem encontrar. Por vezes, para a improvisação, a aventura, quiçá o caos. […]
“É de encontro a todas essas incertezas e riscos que estará exposto a naufragar o Estado brasileiro, desde que a Nação se constitua mansamente, jeitosamente, irremediavelmente à margem de um edifício legal no qual o povo não reconheça qualquer identidade consigo mesmo. Que será então do Estado? Como um barco fendido, ele se deixará penetrar pelas águas e se fragmentará em destroços. O que possa acontecer com estes é imprevisível”.
Ao longo de trinta anos — e particularmente no domínio dos governos Lula e Dilma — um certo Brasil de superfície foi nos arrastando para o esquerdismo radical, com o fundamento de aplicar a nova Constituição. Porém, à medida que o Brasil de superfície ia caminhando para a esquerda, foi despertando e distanciando-se dele um Brasil profundo, marcadamente majoritário, “que é e quer ser autenticamente brasileiro, em legítima continuidade com seu passado, e cujos passos se orientam na linha dessa continuidade, para constituir um Brasil em ascensão, fiel a si próprio, e não o contrário daquele que ele foi e é”.
Chegou-se assim, na perspectiva traçada por Plinio Corrêa de Oliveira em sua obra, a um desacerto gravíssimo entre o Brasil de superfície e o Brasil profundo, entre o Brasil constitucional e o Brasil real. Mas o Brasil de superfície — políticos, meios de comunicação, intelectuais, clérigos de esquerda — parece insistir em continuar no mesmo rumo e tentar, por sortilégios eleitorais, fazer voltar à ribalta as forças políticas que nos conduziram ao presente impasse.
Plinio Corrêa de Oliveira alertava para os imprevistos e riscos que rondariam o Brasil, quando as leis fundamentais que modelam as estruturas e regem a vida do Estado e da sociedade deixassem de ter uma sincronia profunda e vital com os ideais, os anelos e os modos de ser da nação. Três décadas após a promulgação da Constituinte, muitos são os que veem nela fonte de boa parte de nossos males presentes.
Há até quem comece a debater a necessidade de um novo texto constitucional, seja elaborado por notáveis, seja por uma nova Assembleia Constituinte. Uma vez mais, conceitos mal definidos, numa polêmica precipitada, tomam a praça pública, enquanto correntes bem diversas desejam uma nova Constituição por razões diametralmente opostas.
Não parece supérfluo remeter para os alertas de Plinio Corrêa de Oliveira, formulados na obra Projeto de Constituição angustia o País, a fim de que o divórcio entre o País legal e o País real não se aprofunde ainda mais e a massa da Nação saia de dentro do Estado, deixando-o vazio de conteúdo autenticamente nacional.
* * *
As paredes do Paço de São Cristóvão, que abrigou a Família Imperial brasileira, permaneceram de pé, após o fogo ter consumido grande parte do seu conteúdo. Talvez uma imagem dramática do que vem acontecendo no Brasil, corroído por dentro pela ação ideológica da esquerda de diversos matizes. Assim como é possível restaurar o Palácio, também será possível restaurar o Brasil, desde que voltemos a colocar como norte de tal restauração os princípios básicos da Civilização Cristã: a tradição, a família e a propriedade.
Nota:
* A íntegra da obra Projeto de Constituição angustia o País, encontra-se disponível gratuitamente no link:
https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Constituicao_0000indice.htm
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