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Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo

TRANSFORMANDO PEDRAS EM SONHOS – Bicentenário da morte de Aleijadinho: A genialidade do maior expoente da arte barroca brasileira

Por Gabriel J. Wilson

25 minhá 10 anos — Atualizado em: 9/1/2017, 8:52:28 PM


A Santa Ceia, Obra de Aleijadinho em Congonhas do Campo

ARTE INSPIRADA PELA FÉ

A 18 de novembro completam-se 200 anos do falecimento do arquiteto e escultor ouropretano Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, expoente máximo do barroco mineiro.

Temos o prazer de oferecer a nossos leitores uma seleção de certos aspectos mais relevantes da época, do meio e da arte em que o célebre escultor viveu, impregnados de uma religiosidade que marcou o Brasil desde os primeiros momentos da sua existência.

Sob a curadoria de Fábio Magalhães e a coordenação de Ana Helena Curti, o Centro Cultural Banco do Brasil publicou em 2007, no Rio de Janeiro, uma suntuosa obra ricamente ilustrada, intituladaAleijadinho e seu tempo – Fé, engenho e arte, a qual fornece abundante documentação sobre o talentoso artista.

As citações que aqui fazemos são extraídas dessa obra, precedidas do nome do autor do ensaio ou da colaboração, exceto algumas específicas. As fotos, salvo indicação em contrário, são de Paulo Roberto Campos.

*  *  *

Normalmente um povo ou uma nação exprime em arte os seus anseios quando chegou à plena maturidade, ou até na velhice. Assim foi com civilizações milenares como a dos gregos, romanos, chineses, persas, japoneses, hindus e outras. Paradoxalmente, o que o Brasil produziu de mais representativo em matéria de arte deu-se no período conturbado da corrida em busca do ouro nos sertões das Minas, distantes da capital e das principais cidades, quando o País não era senão uma extensão além-mar de Portugal, ainda habitada por grande número de tribos em estado selvagem.

A que se deve esse surto de civilização numa população constituída de raças de três continentes, na busca de um futuro numa terra ignota? A meu ver, deve-se a um desígnio especial da Providência sobre nosso País. Outro problema é saber até onde a população tem correspondido a essa graça.

O Brasil sob o signo da Cruz de Cristo

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Basta reler a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal sobre o descobrimento da “Terra de Vera Cruz”, como foi nomeado inicialmente o Brasil pelo capitão da esquadra, Pedro Álvares Cabral. Após discorrer sobre a terra descoberta e os seus habitantes, o escrivão da armada descreve a cena comovente da primeira Missa:

“Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, […] ouvida por todos com muito prazer e devoção.”

“Por todos”, inclusive os índios que ali estavam, embora nada compreendessem.

“Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.” Trata-se da insígnia da Ordem de Cristo, sob cujos auspícios se realizava a expedição de Cabral. Devido à perseguição à Ordem do Templo na França, o Rei de Portugal criou a Ordem de Cristo, para a qual transferiu os bens dos Templários, ficando ele, Rei, o grão-mestre da Ordem, para garantia da mesma.

Continua a carta de Caminha: “Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do chamamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito”.

Bela e comovente foi também a cerimônia no dia da Santa Cruz, tendo o madeiro sido osculado por todos os portugueses e por grande parte dos índios que ali se encontravam, e cuja docilidade surpreendia, pois não entendiam a língua dos europeus.

O escrivão insiste na sua preocupação apostólica: “E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele trazer-nos para aqui creio que não foi sem causa. E (como) Vossa Alteza tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!”

Sobre as riquezas da terra descoberta, acrescenta: “Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares, frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. As águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

E finaliza, “Contudo o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”

Colonização lenta e penosa

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As excelentes intenções do escrivão da armada de Cabral não se cumpriram de imediato, mas também não foram abandonadas. Ao longo do século XVI, a preocupação maior dos portugueses foi com as feitorias nas Índias, pois a descoberta de sua rota sem passar pelo Mar Vermelho modificara sensivelmente o panorama geopolítico no que se refere às relações da Europa com o Oriente.

Pode-se comparar o esforço colonizador de Portugal ao de uma formiguinha que carrega uma folha imensa, desproporcional ao seu tamanho e força. O fato é que, apesar do comércio com as Índias, as despesas eram enormes. O rei Dom João III tomou a sábia decisão de preferir abandonar as praças portuguesas tomadas aos mouros ao longo da costa africana do Marrocos e concentrar o esforço na colonização do Brasil. Amigo de Santo Inácio de Loyola e muito próximo dos jesuítas, enviou para a América homens de valor e santidade que aqui deram a vida pela catequização dos índios e colonos. Basta citar a obra inigualável de São José de Anchieta no Brasil.

De início, os portugueses exploraram quase exclusivamente os milhares de léguas de litoral,“arranhando a praia como caranguejos”, como disse alguém. De fato eles exploraram a costa, da foz do rio Oiapoque ao rio da Prata. Muito lentamente, foram se estabelecendo no interior, protegido no Sudeste por barreiras naturais, como as serras do Mar e da Mantiqueira, que constituíam obstáculos à penetração no interior do País.

Da corrida do ouro à civilização

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Em 1695 a situação mudar-se-ia radicalmente com a descoberta de ouro no rio das Velhas, próximo às cidades de Sabará e Caeté, em Minas Gerais. Segundo Boris Fausto, em sua História do Brasil (Eduspo, p. 98), a tradição associa a essas descobertas o nome de Borba Gato, genro do bandeirante Fernão Dias.

Também o jesuíta toscano Antonil relata a descoberta em sua obra Cultura e Opulência no Brasil, publicada em 1711. Diz ele que um mulato, cujo nome não foi registrado para a posteridade, estando a prear índios em sertões distantes de uma colina de nome Tripuí, chegou a certa altura às margens de um riacho e dele se aproximou para colher água. Mergulhou a gamela e, ao recolhê-la de volta, viu que nela havia depositadas umas pedrinhas da cor do aço. Nem ele nem seus companheiros de viagem sabiam do que se tratava. O mulato levou as pedras para Taubaté e vendeu-as a Miguel de Sousa, que também ignorava do que se tratava, mas suspeitou que pudessem ter valor. E mandou algumas amostras para serem examinadas no Rio de Janeiro. De fato tratava-se de ouro, recoberto por uma camada de óxido de ferro. Daí o “ouro preto”, que daria nome ao riacho no qual o mulato mergulhara a gamela e à cidade que se tornaria a capital da província (cf. André João Antonil, apud Roberto Pompeu de Toledo, A Capital da Solidão, Ed. Objetiva, p. 193).

Até à época da descoberta das minas de ouro e diamantes, viviam naquela região os índios botocudos, que praticavam a antropofagia. Esse detalhe ressalta o contraste notório com o surto de civilização que veio modificar a região a partir de então.

O arraial de Ouro Preto surgiu em 1698, com a chegada da bandeira dos paulistas Antônio Dias de Oliveira e padre João de Farias Fialho à garganta dominada pelo pico do Itacolomi. Outros povoados se formaram na região. A pequena vila de São Paulo ficou quase despovoada, pois a população masculina em massa tomou o rumo das minas. Para lá rumaram igualmente aventureiros do Rio de Janeiro, da Bahia e de outros rincões da colônia (cf. Fábio Magalhães, p. 26)

Começava assim a “corrida do ouro”, provocando a primeira grande corrente migratória de Portugal para o Brasil. Durante os primeiros 60 anos do século XVIII, chegaram de Portugal e das ilhas do Atlântico cerca de 600 mil pessoas — oito a dez mil por ano. Tratava-se de gente das mais variadas condições — pequenos proprietários, padres, comerciantes e aventureiros. Apenas a presença de mulheres foi pouco significativa, segundo Boris Fausto (op. cit., p. 98).

A exploração das minas naturalmente interessou ao Estado português. Segundo Lourival Gomes Machado (Barroco mineiro, Ed. Perspectivas), de 1735 a 1751 arrecadaram-se, só de quintos (tributo de 20% sobre a produção), na Casa de Fundição local, 457 arrobas de ouro. São 34.275 quilos do precioso metal arrancados do chão, fora as sonegações sabidamente vultosas, correspondentes a 2.142 quilos por ano.

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No século XVIII o Brasil transformou-se no maior produtor de ouro do mundo. De 1700 a 1770, a sua produção foi praticamente igual à de todos os demais países da América entre 1493 e 1850, e cerca da metade do que o resto do mundo produziu nos séculos XVI, XVII e XVIII (Fábio Magalhães, p. 26).

Em 1709 foi criada a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro. Em 1711, o governador Antônio de Albuquerque criou o município de Vila Rica de Ouro Preto, reunindo uma dezena de arraiais pioneiros sob a tutela da Câmara Municipal. Em 1720 criou-se a Capitania de Minas Gerais, separada de São Paulo.

O ritmo dessas medidas administrativas mostra a rapidez do crescimento da região. Isso teve uma repercussão imediata no nível da população. “O dia-a-dia das cidades mineradoras mostra a faina da construção de melhoramentos, como de chafarizes e pontes, e de templos denotativos do poder de suas irmandades” (cf. Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, Cotidiano e contexto cultural nos passos de Aleijadinho, p. 42).

Segundo Rodrigo Mello Franco de Andrade, “a despeito de só ter o povoamento do território mineiro principiado depois de decorridos dois séculos desde o descobrimento do Brasil, poucas décadas bastaram para que essa aérea fosse enriquecida de bens culturais em número maior e com feição muito mais expressiva do que as demais regiões do País” (Revista do Iphan, nº 17, p. II-26).

Os governadores impuseram novo ritmo a Vila Rica, que cresceu e se transformou, especialmente entre 1725 e 1750, período de maior abundância na extração de ouro. Do ponto de vista artístico e cultural, manteve intensa atividade até o fim do século XVIII e mesmo no início do século XIX (Fábio Magalhães, p. 29).

Interior da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto
Interior da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto

Toda essa riqueza produziu profundas mutações nas mentalidades. Aquela região podia ter-se transformado numa espécie de farwest norte-americano. Não foi o que aconteceu. A preocupação dessa população oriunda de uma miscigenação tão díspar foi com a religião, o maravilhoso e a cultura.

Fábio Magalhães apresenta como exemplo dessa transformação a procissão de trasladação do Santíssimo da capela do Rosário para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, realizada em 1733 e conhecida como o Triunfo Eucarístico. “O cortejo, de grande luxo, apresentava inúmeros quadros e alegorias, além de uma infinidade de figuras secundárias, muitas delas trajando vestes ornadas de ouro e diamantes” (p. 29).

Por outro lado, desenvolveu-se em Vila Rica “intensa vida cultural e literária. A música tinha grande presença na vida cotidiana, sobretudo nos ofícios e festejos religiosos. Documentos atestam que existia um número muito expressivo de compositores e de conjuntos musicais em todas as vilas das Minas Gerais. Há relatos que afirmam haver mais músicos em Vila Rica, no século XVIII, do que em Lisboa, capital do reino. A literatura era prestigiada e a Arcádia mineira abrigava a inteligência da época” (idem, p. 30).

Em 1763, a capital do Governo-geral do Brasil transfere-se de Salvador para o Rio de Janeiro. A fim de aproximar-se das Minas Gerais, o vice-rei instala-se no Porto do Ouro, ligado a Vila Rica pelo Caminho Novo (Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, Cotidiano e contexto cultural nos passos de Aleijadinho, p. 44).

É durante o afluxo de imigrantes e o surto de riqueza acima descrito que nasce, em 1738, Antonio Francisco Lisboa, conhecido como o Aleijadinho.

A humilde carreira de um gênio

Igreja Nossa Senhora do Carmo em São João del Rei
Igreja Nossa Senhora do Carmo em São João del Rei

Filho natural do prestigioso arquiteto e mestre-de-obras português Manuel Francisco da Costa Lisboa com Isabel, uma escrava africana, Antonio Francisco Lisboa foi alforriado pelo pai ao ser batizado. Aos doze anos ingressou no seminário de Donatos do Hospício Terra Santa, e durante nove anos estudou com os frades leigos da Ordem dos Esmoleres da Terra Santa, onde recebeu aulas de gramática, latim, matemática e religião.

Antonio Francisco teve seu aprendizado prático como artesão na oficina de seu pai, especialmente com seu tio Antonio Francisco Pombal, bem como com outros artistas portugueses que emigraram para Minas na primeira metade do século XVIII.

Aos 14 anos projetou o risco em sanguínea do chafariz para o pátio do Palácio dos Governadores em Ouro Preto. Com quase 20 anos, foi encarregado do projeto e execução do chafariz em pedra-sabão (esteatita) nos fundos do mosteiro do Hospício da Terra Santa, em Ouro Preto. Esta é considerada a sua primeira obra como escultor. E a maestria no trabalhar a pedra-sabão foi, a bem dizer, a sua especialidade.

Ainda muito jovem Antonio Francisco Lisboa colaborou com José Coelho Noronha na capela-mor da matriz de Caeté e aprendeu desenho ornamental com João Gomes Batista. Adulto, revelou grande talento artístico e estilo próprio. Dominou com maestria os ofícios de arquiteto, escultor e entalhador (Fábio Magalhães, p. 30).

Em 1766, Antônio Francisco projeta a igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, uma de suas obras-mestras, considerada um dos exemplos mais notáveis da arte barroca. No ano seguinte falece seu pai, sem mencioná-lo em testamento, que favorece apenas os filhos legítimos.

Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto
Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto

Elabora em 1771 o projeto da igreja de Nossa Senhora do Carmo, de Ouro Preto, concluída em 1773. Projeta e conclui várias outras obras.

As obras do Aleijadinho estão em quase todas as cidades históricas da região das minas, especialmente em Ouro Preto, Mariana, Sabará, São João del Rei, São José del Rei (hoje Tiradentes) e Congonhas do Campo.

Nesta última encontra-se a Basílica do Bom Jesus de Matosinhos, que lembra tanto o Cristo venerado em uma freguesia do Porto, quanto o Santuário do Bom Jesus, nas cercanias de Braga, em Portugal. São reminiscências desejadas pelo doador da obra de Congonhas do Campo. Ali o Aleijadinho passou a dolorosa fase final de sua vida e realizou a sua obra-prima, que são os doze profetas maiores do Antigo Testamento e as cenas da Paixão de Cristo, como veremos adiante.

Não é nosso objetivo fazer aqui o elenco exaustivo das obras do grande artista, que o leitor interessado poderá encontrar em publicações especializadas. Desejamos apenas mostrar o alcance por assim dizer profético da sua genialidade, com relação ao futuro de Minas Gerais e do Brasil, como artífice de uma arte herdada de Portugal, mas enriquecida com contribuições genuinamente brasileiras. Assim também a consideram conceituados críticos de arte.

A opinião dos críticos

Igreja do Carmo, em Ouro Preto
Igreja do Carmo, em Ouro Preto

O mais importante testemunho de época sobre a arte de Aleijadinho é o registro historiográfico feito em 1790 pelo capitão Joaquim José da Silva, da cidade de Mariana. Segundo o documento, “Antônio Francisco, o novo Praxíteles, é quem honra igualmente a arquitetura e a escultura. […] Superior a tudo e singular nas esculturas de pedra em todo o vulto ou meio-relevado e no debuxo e ornatos, irregulares do melhor gosto francês […]. Em qualquer peça sua que serve de realce aos edifícios mais elegantes, admira-se a invenção, o equilíbrio natural, ou composto, a justeza das dimensões, a energia dos usos e costumes e a escolha da disposição dos acessórios com os grupos verossímeis que inspira a bela natureza. Tanta preciosidade se acha depositada em um corpo enfermo que precisa ser conduzido a qualquer parte e atarem-se-lhe ferros para poderem obrar” (A. O. de Araújo Santos, p. 46)

A igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto é considerada a obra máxima do estilo barroco no Brasil. Estudiosos como Lourival Gomes Machado consideram-na inovadora do ponto de vista artístico: “São elementos barrocos puros e autênticos. O espírito que os organiza, no entanto, […] não abre mão de uma contribuição original e impõe uma ordem especial em que se guarda, do estilo adotado, a característica principal, que é o contínuo movimento das massas e linhas, sem se perder nos paroxismos do “barroquismo” decadente e nos ademanes prenunciadores do rococó. Numa palavra, [na Igreja de] São Francisco esplende o barroco, mas o barroco brasileiro das Gerais” (F. Magalhães, p. 31 s.).

Para o escritor e crítico Mário de Andrade, que esteve à frente da reavaliação do valor estético do barroco mineiro pelos modernistas, “esse tipo de igreja fixado imortalmente nas duas São Francisco de Ouro Preto e de São João del Rei não só corresponde ao gosto do tempo, refletindo as bases portuguesas da colônia, como também já se distingue das soluções barrocas luso-coloniais por uma tal ou qual denguice, por uma graça mais sensual e encantadora, por uma delicadeza tão suave, eminentemente brasileiras… É a solução brasileira da colônia.” (Cronologia de Antonio Francisco Lisboa, organizada por Ana Ciccacio, p. 226).

Igreja São Francisco de Assis, em São João del Rei
Igreja São Francisco de Assis, em São João del Rei

Por outro lado, Lourival Gomes Machado chama a atenção para a pesquisa empreendida pelo cônego Raimundo Trindade, na qual este nota a inspiração gótica em algumas obras do artista. Segundo Machado, o artista mineiro teria se inspirado (não copiado) em gravuras dos trabalhos de Lorenzo Ghiberti para a catedral de Florença (Cronologia, p. 227 s.).

Germain Bazin, falecido em 1990, é um dos críticos de arte mais autorizados do século XX. Conservador por longo tempo do Museu do Louvre, de Paris, é autor de A arquitetura religiosa barroca no Brasil (Record, Rio de Janeiro, 1956). Sobre a obra de Aleijadinho, assim se exprime ele, com concisão e propriedade:

“Nessas regiões permanecidas selvagens, a ausência da tradição artística autóctone constituía uma circunstância favorável à implantação de uma arte que prolongava com muita originalidade a da metrópole. Entretanto, no século 18 o grau de civilização da colônia permitiu-lhe criar escolas artísticas originais, capazes de inventar formas pessoais, principalmente na região favorecida pela descoberta do ouro, onde se fundou a vila de Ouro Preto; lá, no fim do século 18, o filho de um arquiteto português e de uma escrava negra, Antonio Francisco Lisboa, dito o Aleijadinho (1738-1814), concebeu uma das expressões mais notáveis da estilística barroca.

“Seria à presença da mão-de-obra negra no meio artístico brasileiro que se deveria atribuir uma aptidão à forma escultural que não se encontra a mesmo título na metrópole? Tal tendência teve como resultado a obra genial do Aleijadinho, que anima com uma grande inspiração lírica e vitaliza com uma energia primitiva a plástica barroca, então esgotada na Europa pelo formalismo e pela virtuosidade” (Cf. Germain Bazin, Histoire de l’Art, Massin, Paris, 1992, 5e ed., p. 185 – os destaques são nossos).

Santuário do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo
Santuário do Senhor do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo

A cruz e a glória

aleijadinho_-_euclasio_venturaAté os 38 anos de idade, Antonio Francisco Lisboa gozava de perfeita saúde. De temperamento alegre e extrovertido, apreciava boa comida, bailes e festas populares. Isso não significa, porém, que não tivesse sofrimentos. Vários trabalhos em escultura reconhecidos como criações suas não possuem registro de época confirmando a autoria. Isso se deveria, segundo especialistas, a sua condição de mulato, entre outras razões. Antonio Francisco teria sido obrigado a aceitar muitas vezes contratos como simples artesão diarista e não como mestre (Cronologia, p. 227).

A partir dessa idade, entretanto, manifesta-se nele uma doença terrível que irá deformar e atrofiar o seu corpo, passando o artista a ser carregado por escravos para vistorias e executar seus trabalhos. De 1777 em diante será obrigado a mandar atar os instrumentos às mãos e usar joelheiras de couro. A natureza do mal de que sofria é controvertida. O poeta Manuel Bandeira assim descreve o seu sofrimento:

“Aleijadinho padecia frequentemente de dores violentas, tão agudas que o levaram mais de uma vez a mutilar os dedos […], não caminhava senão de joelhos. Para isso mandou fazer umas joelheiras de couro, e, assim, subia escadas com grande agilidade. Perdeu também quase todos os dedos das mãos.

“Para trabalhar, era mister que lhe amarrassem às mãos o cinzel e o martelo. Foi assim que, em idade já avançada, lavrou ele as 12 estátuas dos profetas e as sessenta e tantas figuras dos passos [da Paixão de Cristo] de Congonhas do Campo.

“Todavia, a enfermidade, longe de abater o ânimo de Antônio Francisco Lisboa, como que estimulou sua extraordinária capacidade de trabalho. O principal efeito dela foi segregá-lo da sociedade, que ele passou a evitar. Às primeiras horas da madrugada punha-se a caminho do local em que devia trabalhar, quase sempre uma igreja ou capela, de onde só regressava em noite fechada” (Cronologia, p. 227).

De acordo com os traços recuperados por Rodrigo Bretãs, Antônio Francisco teria superado preconceitos e obstáculos graças à energia de seu temperamento. Não lhe é concedido acesso às Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco “mas ambas vão chamá-lo para enobrecer-lhes os templos. Os governadores, de igual maneira, o contratam: vê-se sua presença no retábulo da capela do palácio de Vila Rica. Entre os companheiros de ofício, é acatado e consultado, sendo chamado para ‘louvar’ com seu laudo pericial obras de outros mestres” (A. O. de Araújo Santos, p. 45).

Interior da Igreja São Francisco de Assis, em São João del Rei
Interior da Igreja São Francisco de Assis, em São João del Rei

O cognome “Aleijadinho” aparece escrito em documento de 1810, referente ao projeto da nova fachada da Matriz de Santo Antônio, na Vila de São José del Rei, hoje Tiradentes. Ele terá reagido tenazmente ao tratamento depreciativo, por certo contribuindo para a fixação da alcunha, também mencionada por viajantes estrangeiros que documentam a região no início do século XIX.

Desfrutando de renome, o artista passa a ser visto sempre encapuzado, conduzido a cavalo ou carregado por seus escravos, nas ruas das vilas do ouro. A enfermidade dificulta-lhe a locomoção e a sua aparição pública se cerca de pudor e espanto. As janelas de Ouro Preto, em geral fechadas por gelosias de madeira, resguardavam os olhares que observam, com protegida malícia, o vulto estranho do aleijado (idem, ibidem).

Esta foi a cruz de Antônio Francisco Lisboa. Qual foi a sua glória?

Entendamo-nos: não foram os elogios que recebeu dos homens; foi de ter abraçado o próprio sofrimento como Nosso Senhor Jesus Cristo abraçou a sua Cruz.

A obra-prima

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“A obra maior do Aleijadinho é o conjunto do santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo”, escreve A. O. de Araújo Santos. “Ao subir ao alto do Morro do Maranhão, onde o eremita português Feliciano Mendes plantara uma cruz votiva, ele é um homem abatido quanto lhe apequena os sentimentos, fazendo do arrogante e soberbo que fora um infeliz acabrunhado. No artista está também um peregrino, e sua obra tem a expressão de um ex-voto da tragédia que o arrebata, como as cenas da Paixão de Cristo ali estão para expiar a derrocada das Minas […] É na solidão do sacro monte de Congonhas, longe das empobrecidas vilas ricas, que ele arremata, em grandiosa criação, o ciclo artístico do eldorado do Brasil” (p. 46).

Concebidas em 1796 e finalizadas em 1799, as cenas da Paixão de Cristo são abrigadas em seis capelas, que se alternam no caminho rumo ao alto do morro onde se encontra o santuário. As principais imagens dessas capelas foram executadas por Aleijadinho, e as demais por artistas de sua oficina sob a direta orientação dele.

Ali o grande artista mineiro “deu ao mundo cristão as últimas grandes imagens do drama da Paixão”, no dizer de Germain Bazin (cf. A. O. de Araújo Santos, p. 43). Bazin nota ainda certo medievalismo nas estilizações dos soldados romanos que figuram nas cenas da Paixão (F. Magalhães, p. 36).

O realismo das cenas é impressionante. Os soldados que insultam Nosso Senhor têm de tal modo cara de maus, que pessoas do povinho literalmente “vingaram-se” batendo neles (o que exigiu uma restauração das esculturas…).

A figura de Jesus é majestosa, pungente, altamente expressiva. As cenas mereceriam ser analisadas de vários ângulos.

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Quanto aos doze Profetas que se encontram no átrio da Basílica do Senhor Bom Jesus, em Congonhas do Campo (MG), eles foram esculpidos em esteatita (pedra-sabão) de 1800 a 1805. Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira afirma que “a gigantesca empreitada do trabalho de pedra parece ter exigido de Aleijadinho doente, sexagenário e esgotado pela recente maratona da obra dos passos, um esforço quase sobre-humano” (Cronologia, p. 233).

“São mineiros esses profetas, comenta Germain Bazin (Cronologia, p. 233). Mineiros na patética e concentrada postura em que os armou o mineiro Aleijadinho; mineiros na visão ampla da terra, seus males, guerras, crimes, tristezas e anelos; mineiros no julgar friamente e no curar com bálsamo; no pessimismo; na iluminação íntima; sim, mineiros de há 150 anos e de agora: taciturnos, crepusculares, messiânicos e melancólicos”.

Ezequiel (à dir. obra de Aleijadinho; à esq. na Catedral de Amiens)
Ezequiel (à dir. obra de Aleijadinho; à esq. na Catedral de Amiens)

Os mineiros não podiam receber melhores elogios de um francês…

Voltemos aos Profetas: eles parecem fora do tempo ou da realidade banal deste mundo. Contemplam o horizonte, enfrentam o inimigo, clamam aos céus… São homens de uma fé inabalável, que repreendem os pecadores para reerguê-los: De stercore erigens pauperes… para reerguer os miseráveis das imundices em que caíram!

Como precisamos deles! Falam como enviados de Deus e com a autoridade d’Ele. Daí uma segurança, um desafio que paira acima de todos os mortais.

Grande admirador dos Profetas do Aleijadinho era Plinio Corrêa de Oliveira, que tanta falta faz a este Brasil desfigurado e desviado dos desígnios que a Providência lhe reservou desde a eternidade. Para ele, a arte barroca brasileira prenunciava o grandioso porvir desta Terra de Santa Cruz. A título de exemplo, encerro com um comentário dele a propósito de duas obras do nosso genial Aleijadinho, publicado nesta revista (edição de junho/1959):

Daniel (à esq. obra de Aleijadinho; à dir. na Catedral de Amiens)
Daniel (à esq. obra de Aleijadinho; à dir. na Catedral de Amiens)

“Se fossem conhecidas as obras-primas que a era colonial deixou em toda a América Latina, melhor se compreenderia, na contemplação dessas primícias culturais, que não é só um futuro de grandeza material que nos aguarda.

“Se, por exemplo, na Europa conhecessem os trabalhos do Aleijadinho, veriam que fazem muito boa vista ao lado de conceituadas e famosas produções da arte francesa, italiana ou alemã.

“As figuras de Daniel e Ezequiel, em duas esplêndidas estátuas da majestosa Catedral de Amiens: piedosas, naturais, dignas, afáveis, dão bem todo um aspecto da fisionomia moral tão rica e tão complexa dos Profetas.

“Nas duas fotos [abaixo], vemos Daniel e Ezequiel representados em admiráveis esculturas de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (Santuário do Bom Jesus, Congonhas do Campo, no Estado de Minas Gerais). O olhar de lince de Ezequiel parece transpor os séculos, analisando um futuro remoto, que seus lábios vigorosos estão prontos a anunciar para os homens.

“Daniel, tão varonil quanto Ezequiel, tem entretanto uma fisionomia mais suave. Seu olhar meditativo parece fitar a paisagem sem vê-la, como se ela estivesse interceptada, numa zona ideal do espaço, por todo um mundo de visões augustas e piedosas que deslizam diante dele.

“Não é exato que as obras-primas de nosso artista figuram muito bem, e até com honra, ao lado dos belos trabalhos da lindíssima catedral francesa?”.

 

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 767 (Novembro/2014)

 

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