Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
9 min — há 10 anos — Atualizado em: 8/10/2015, 11:13:18 PM
Em resposta ao artigo “O evangelho da família – O discurso diante do Consistório”, no qual o cardeal Kasper propõe um amolecimento da doutrina e da prática da Igreja quanto à recepção dos Sacramentos por divorciados recasados, apareceram dois livros importantes.
O primeiro deles, Permanecer na verdade de Cristo: Matrimônio e Comunhão na Igreja Católica, [foto acima] foi publicado por Roberto Dodaro com contribuições dos cardeais Gerhard Ludwig Müller, Carlo Caffarra, Walter Brandmüller, Raymond Leo Burke e Velasio de Paolis, além de outros teólogos.
O segundo livro intitula-se O verdadeiro Evangelho da família. A indissolubilidade do matrimônio: Justiça e Misericórdia, [foto abaixo] de autoria de Juan José Pérez-Sobra e Stephan Kampowski, professores no Instituto Pontifício João Paulo II. As duas obras se complementam e oferecem no seu conjunto um apanhado bastante completo sobre o tema.
Este artigo deverá conter uma apresentação mais próxima da segunda publicação, que trata mais a fundo dos aspectos culturais do problema. Ou melhor, o livro de Pérez-Soba e Kampowski pode ser lido sob dois aspectos: um teológico e outro cultural. Quem estiver à procura de uma refutação sistemática e teológica do discurso de Kasper diante do Consistório ou quiser conhecer o quadro cultural do seu pensamento, encontrá-los-á nessa obra. Analisarei, pois, o lado “cultural” do problema.
Logo de início de seu livro, Pérez-Soba e Kampowski constatam que a moral conjugal e sexual católica encontra forte resistência e incompreensão no mundo moderno. Segundo o conceito católico, a sexualidade não conduzida pelo amor é egoísmo. Para que ela possa ser praticada dentro do espírito do amor, deve estar aberta à sua função primordial, que é a procriação. Esta, por sua vez, exige uma instituição estável: o matrimônio. Sexualidade, amor e matrimônio estão, portanto, unidos organicamente entre si.
Mas, segundo a concepção “moderna”, esses três elementos são coisas distintas, isoladas entre si, que só se reúnem se for de utilidade. Foi sobretudo a “revolução sexual” que separou a sexualidade do amor (e de qualquer tipo de casamento). E não apenas a partir dos anos 1960, mas muito antes. O psicanalista Wilhelm Reich já considerava a sexualidade uma atividade humana, a qual deveria ser praticada inteiramente isenta de considerações superiores. Ele defendia portanto exatamente o contrário da posição católica.
Esse ponto de vista de Reich se impôs cada vez mais na sociedade. E atualmente com tanta força, que a Igreja Católica se encontra numa posição defensiva. Muitos nem conseguem mais entender por que o “sexo” só deve existir no matrimônio, e ainda mais sem métodos artificiais de contracepção.
Esta mentalidade liberal moderna marca a nossa cultura. No cinema, nas novelas de TV, na literatura, nos talk-shows, na propaganda, em todos os lugares se difunde uma visão de sexualidade que corresponde em grande medida à de Wilhelm Reich e de seus sucessores, principalmente Herbert Marcuse e o movimento de Maio de 68. A cultura moderna em nada favorece a Igreja Católica no seu afã de ensinar e tornar compreensível sua moral sexual e conjugal. Pelo contrário, em muitos pontos tal cultura é contrária ao Magistério católico.
Para essa situação existem duas respostas: uma seria a de mudar completamente a cultura. Esta foi a atuação de São Paulo e dos demais Apóstolos, que passavam constantes descomposturas ao mundo antigo e conclamavam para uma total conversão. O mesmo fizeram mais tarde santos como São Bonifácio ou São Remígio, o qual disse a Clóvis, rei dos Francos, após a sua conversão: “Adora quod incendisti, incende quod adorasti!” (“Adora o que queimaste, queima o que adoraste!”).
O cardeal Kasper [foto acima] está longe dessas cogitações. Ele acha que é preciso aceitar os homens nas suas realidades de vida e tratá-los com muito cuidado. De nenhum modo se deve exigir demasiado deles, nem mesmo uma mudança radical de vida. Tal “posição pragmática” é muito benquista na Alemanha. Muitos prelados e sacerdotes logo se dispõem a adaptar-se às circunstâncias vigentes.
Em seu livro, Pérez-Soba e Kampowski escrevem que o cardeal Kasper não acredita que se possa exortar as pessoas a viverem praticando a abstinência sexual, exigência que se lhe afigura como uma “carga insuportável”. E mesmo mantendo de pé a doutrina da indissolubilidade conjugal, será preciso, segundo o cardeal, legitimar de alguma maneira a possibilidade de uma segunda forma de convivência que admita que os divorciados recasados à Comunhão.
Se chegarmos a esse ponto, estará derrubada uma coluna basilar do ensinamento da Igreja sobre a sexualidade. “Esta coluna basilar é a persistência da Igreja de que o único âmbito adequado para se consumar a sexualidade humana é no contexto do amor conjugal.”
Em decorrência de sua posição, o cardeal Kasper sugere uma mudança na pastoral dos Sacramentos. Mas isso não é possível sem uma mudança do ensinamento da Igreja sobre o matrimônio e a sexualidade, bem como acerca dos demais sacramentos, especialmente o da Eucaristia e o da Confissão, com a consequente modificação da Cristologia católica. No fundo, fica sugerido que a Fé católica ensinada há dois mil anos não tem condições de ser praticada pela maioria do gênero humano. Pérez-Soba e Kampowski tratam detalhadamente dessa questão.
Se aplicadas, as sugestões do cardeal Kasper em seu discurso no Consistório teriam não apenas amplas consequências teológicas, mas também, em grande medida, culturais.
A negação do caráter exclusivo do ato sexual no matrimônio nada mais é que a capitulação diante da “revolução sexual”, a qual, como foi descrito acima, há décadas que vai ganhando terreno.
Segundo a doutrina católica, o casamento é indissolúvel por determinação divina. Portanto, o homem não pode anular o sacramento do matrimônio consumado. A aceitação pela Igreja dos divorciados recasados à Comunhão equivaleria à aceitação da bigamia. Não sendo esta um matrimônio no sentido católico, não pode ser realizada “no religioso”.
Como se poderá então excluir da Comunhão os que não são casados e vivem em regime de amor livre? Segundo a nova “moral” que se quer introduzir, também estes deveriam ser admitidos à Comunhão. Se assim for, não se estará longe de se admitir também à Comunhão os que vivem em relações homossexuais ou os transgêneros.
Em suma, a Igreja teria se adaptado rapidamente à “revolução sexual” em toda a sua amplitude. Do amor livre à ideologia do gênero, tudo estaria incluído. Pérez-Soba e Kampowski escrevem: “Quase tudo o que a Igreja ensina sobre esses temas, mantém-se ou cai com a doutrina fundamental sobre o lugar próprio da sexualidade humana.”
O cardeal Walter Kasper não vai tão longe em seu discurso consistorial. Mas outros, sobretudo muitos teólogos e grupos como “Nós somos Igreja”, o fazem e se reportam a Kasper. Eles tiram conclusões que o cardeal em seu discurso não quis fazer. E, com o tempo, as reivindicações dos católicos de esquerda tornar-se-ão mais radicais e desavergonhadas. O cardeal Kasper abriu com seu discurso a caixa de Pandora, da qual saiu toda a sujeira da “revolução sexual” do Movimento de 68 que ameaça se introduzir na Igreja.
Os dois autores afirmam que uma abertura da Igreja às máximas da “revolução sexual” teria consequências fatais para o mundo de hoje. Para eles, a cultura contemporânea não é nem de longe tão libertária como frequentemente se admite ou é apresentado pela mídia. Mesmo nesse mundo moderno, a Igreja católica é como um farol. Se este se apagasse, as consequências seriam imprevisíveis:“O mundo moderno não encontraria mais um interlocutor para temas que lhe pesam no coração. O que é justo, o que é injusto? Como se pode dirigir bem a própria vida?
“Quando a Igreja se pronuncia sobre temas de Moral, de contraceptivos e de fecundação artificial, de clonagem e manipulação genética até relações sexuais pré-matrimoniais, divórcio, aborto e eutanásia, o mundo moderno acaba sendo um interlocutor. Mesmo que o mundo moderno não concorde, que esteja indignado e chocado, que lance campanhas midiáticas contra pessoas isoladas ou contra toda a Igreja… Apesar de tudo, o mundo moderno mostra, justamente pelo fato de externar desgosto, raiva e incompreensão face à doutrina moral da Igreja, que a considera importante e isto está longe da única posição, que é mais mortal do que a oposição, a indiferença.”
Segundo a doutrina católica, o casamento é indissolúvel por lei divina. Quando realizado validamente, não pode ser dissolvido pelo homem. Segundo os dois autores, a dicotomia entre sexualidade e procriação não só dificultou a compreensão da doutrina sexual da Igreja, mas influenciou gravemente a cultura moderna. O aborto, a incapacidade de formar uma união estável, o alto índice de divórcios, a sexualização precoce são consequências diretas dessa mentalidade.
Mas a consequência de maior alcance é a ideia de que o gênero biológico perde a sua importância: a ideologia do gênero “conduz a uma ruptura entre o gênero biológico e o gênero (gender) social e tira as consequências mais extremas da célebre afirmação de Simone de Beauvoir: ‘não se nasce como mulher, mas a gente se torna mulher’. Ela nega todo e qualquer significado da diferença sexual para a formação da própria identidade, que, segundo Tony Anatrella ‘o conceito de orientação sexual substitui completamente a ideia identidade sexual, a tal ponto que apresenta, por exemplo, a homossexualidade como uma alternativa para a heterossexualidade’ […] Parece de fato que a teoria do gênero só pode surgir numa sociedade que perdeu completamente a consciência da interdependência entre atividade sexual e geração. Só neste contexto é que a preferência sexual passa a ser mais importante do que a diferença dos sexos e sua relação íntima com a fertilidade”.
Estamos, portanto, imersos numa verdadeira “revolução antropológica”, na qual desaparecerão como consequência os conceitos de maternidade e paternidade. “Papai” e “mamãe” serão substituídos pelos termos “progenitor 1” e “progenitor 2”. “A ideologia do gênero já foi introduzida nos planos de ensino escolar, e se a Igreja continuar silenciosa, dentro de vinte anos o ‘Pai-Nosso’ poderá soar ofensivo aos ouvidos pios genderizados. Poderia acontecer de os pais que ensinarem o ‘Pai-Nosso’ a seus filhos perderem o direito de educá-los e irem parar na cadeia”, escrevem Juan José Pérez-Soba e Stephan Kampowski.
Em tais passagens se veem a força de argumentação e a largueza de vistas dos autores de O verdadeiro Evangelho da família. A aplicação prática das idéias do cardeal Kasper implicaria não apenas na destruição do ensinamento moral católico sobre matrimônio e sexualidade, mas no triunfo espetacular da “revolução sexual”, com consequências inimagináveis.
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Artigo publicado também no “Junge Freiheit”, Berlim, 17-2-15. Tradução de Beno Hofschulte.
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