Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
9 min — há 8 anos — Atualizado em: 9/1/2017, 8:47:18 PM
Muitos católicos, ao lerem o Evangelho, sentem certa estranheza e mal-estar vendo o modo tão severo com que Nosso Senhor Jesus Cristo trata a estrutura eclesiástica de seu tempo, isto é, os fariseus e doutores da lei. Não mereceriam eles pelo menos algum respeito pelo cargo que ocupavam na religião?
Antes de entrar no cerne do problema, vejamos algumas das impressionantes palavras com que Nosso Senhor fustiga esses “sepulcros caiados”, essa “raça de víboras”: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Sois semelhantes aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão” (Mt 23, 37). Quer dizer, aparentam virtude, mas no fundo são inteiramente corrompidos.
O divino Salvador questiona a idoneidade e boa fé deles: “Vós tendes por pai o diabo, e quereis fazer os desejos de vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não se manteve na verdade, porque a verdade não está nele” (Jo 8, 44).
Por isso, até mesmo a pregação deles deve ser recebida com cautela: “Raça de víboras, maus como sois, como podeis dizer coisas boas? Porque a boca fala do que lhe transborda do coração”. (Mt 12, 34).
Apesar de tudo, quando eles transmitem os bons princípios da religião, devem ser ouvidos. Mas com reservas: “Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem”. (Mt 23:3). Repreende-os ainda: “Percorreis mares e terras para fazer um prosélito e, quando o conseguis, fazeis dele um filho do inferno duas vezes pior que vós mesmos”. (Mt 23:15). Ou seja, corrompem mesmo aqueles a quem atraem para a religião, tornando-os dignos da eterna perdição.
Resultado: se esses fariseus, escribas e doutores da Lei não se converterem e fizerem penitência, condenar-se-ão: “Como escapareis ao castigo do inferno?” (Mt 23, 33).
Mentalidade fruto do liberalismo e do sentimentalismo
Para começar, devemos reconhecer que essa estranheza e mal-estar diante da severidade de Jesus são frutos sobretudo do liberalismo em que fomos educados, e de um exacerbado sentimentalismo que induz muitos a ter pena em alguns momentos até do próprio Judas, porque foi condenado eternamente.
É preciso compreender que, sendo Nosso Senhor Jesus Cristo a Sabedoria Encarnada, não poderia errar ao tratar assim aqueles representantes da religião. Deveria haver alguma razão que justificasse tal procedimento. E as há.
O excelente escritor americano do início do século passado, William Thomas Walsh, em seu esplêndido livro São Pedro, Apóstolo[i],[capa ao lado] nos dá interessantes dados esclarecedores a esse respeito.
É patente a má fé dos escribas, fariseus e doutores da Lei, que deveriam conhecer as Escrituras e saber que era chegada a hora da vinda do Messias. Pois, “para qualquer mente sã e justa, era impossível considerar Jesus de Nazaré como um louco”. “Quanto mais notável é um homem, menos provável se torna que se vanglorie de dons e poderes incomuns. A única exceção possível seria um homem que fosse realmente Deus. Também não seria fácil provar que fosse um impostor. Os charlatães procuram sempre qualquer coisa para si e não levaria tempo a um observador sensato descobrir a fraude. O objetivo pode ser dinheiro, poder, mulheres ou a satisfação de simples vaidade”. Ora, Jesus “parecia desviar-se do seu caminho para desagradar a todos os potentados que teriam podido, por razões pessoais e vantagens mundanas, fazer causa comum com ele”.
Além do mais, os fariseus, escribas e doutores da Lei deveriam saber que a vinda do Messias desejado estava próxima, pois o cetro havia caído nas mãos de estrangeiros e terminava o tempo predito pelo profeta Daniel para a vinda do Messias. E, sobretudo, as palavras de Jesus eram autenticadas por estupendos milagres, inclusive ressurreições, que ninguém de boa fé podia negar.
Por isso, pergunta Walsh: “Por que razão as principais autoridades de Israel se recusavam a encarar a evidência e a examinar o assunto [da divindade de Jesus] com seriedade? […] As autoridades do Templo não acreditavam n’Ele porque, no fundo, também não acreditavam em Deus Pai e no seu profeta Moisés, cujos nomes andavam sempre nos seus lábios. Nesse caso, eram ateus, ainda que não ostensivamente. Mas, como era possível que tais homens, com a sua posição, tivessem caído num tal abismo de trevas espirituais?” (p. 81).
Anás e Caifás, sentados, montam uma farsa de julgamento para condenar Jesus Cristo, de pé com as mãos atadas. Afresco da Capela degli Scrovegni em Pádua (Itália). Pintado entre 1304 e 1306 pelo célebre artista italiano da época medieval Giotto di Bondone (1267 – 1337).
Anás e Caifás, sentados, montam uma farsa de julgamento para condenar Jesus Cristo, de pé com as mãos atadas. Afresco da Capela degli Scrovegni em Pádua (Itália). Pintado entre 1304 e 1306 pelo célebre artista italiano da época medieval Giotto di Bondone (1267 – 1337).
Se, como diz o adágio latino, “nada de grande se faz de repente”, deve ter havido, portanto, todo um longo processo de decadência para levar um corpo religioso tão considerável, praticamente em seu conjunto, a tão lastimável estado.
Nem sempre fora assim. Nos idos tempos, os fariseus fizeram causa comum com os Macabeus em sua revolta contra o domínio pagão. Isto lhes granjeou a simpatia dos israelitas, pelo que “o seu poder aumentou tanto, que passaram a identificar-se virtualmente com o judaísmo oficial, e a serem reconhecidos como a autoridade docente em Israel. […] A presença de devotos e homens sinceros como Hilel, Gamaliel, Nicodemos e Saulo de Tarso nas suas fileiras, recordava a Israel as nobres tradições farisaicas doutros tempos”.
Como esses homens de Deus começaram a se corromper? Escreve Thomas Walsh: “A tentação característica dos bons é o orgulho [“Sereis como deuses”]. A partir do momento em que esses heróis tomaram em mãos os destinos do povo judeu, e seus olhares começaram a desviar-se das causas de Deus e de suas infinitas perfeições para se deterem na contemplação de si próprios […] perderam os fariseus o dom da fé. E a fé — a certeza da verdade não vista — foi a essência da antiga religião. […] Perdido o precioso dom da crença sobrenatural, tornaram-se materialistas […]. Deus, não sendo para eles mais do que um nome, era como um mero guarda-livros que atribuía a cada pessoa a sua recompensa numa proporção matemática em relação às suas obras”.
Isso os levou, segundo o escritor, a formar uma sociedade secreta iniciática, antes do advento de Cristo, para melhor obterem seus fins. (p. 83)
E o que falar dos saduceus, que muitas vezes faziam causa comum com os fariseus para discordar e provocar o Messias? Livres pensadores da época, eles negavam a ressurreição dos mortos e a imortalidade da alma. “Sendo ambos [saduceus e fariseus] essencialmente materialistas, secularistas, pragmáticos e mundanos, os dois grupos procuravam atuar em estreita harmonia quando estavam em causa interesses comuns” (p. 84), ou seja, boicotar de todos modos possível os ensinamentos de Jesus de Nazaré.
“Através do controle do Sumo Sacerdócio [que já no tempo de Nosso Senhor lhes era atribuído, não por Israel, mas pelos romanos], algumas famílias abastadas e interligadas dominavam toda a vida judaica e cobravam tributo a quase todos os judeus do mundo. […] É a estes, e não ao povo judeu, que os quatro Evangelistas se referiam geralmente quando escreviam os ‘judeus’”.
Durante a vida de Nosso Senhor, o Sumo Pontífice era Anás. Para saber de quem se tratava, diz Walsh: “Ele e seus filhos […] subornavam e corrompiam juízes, intimidavam o Sinédrio ou o Conselho dos Setenta Anciãos, e colaboravam discretamente com Pilatos e outros oficiais romanos, enquanto simulavam denunciá-los em público”.
Quando Anás foi substituído pelo seu genro Caifás, as coisas não foram diferentes, pois “Anás continuava a segurar as rédeas do poder por detrás da cortina, e não só ‘aconselhava’ Caifás a título informal, como também presidia o Sinédrio na sua qualidade de Nasi ou príncipe. Na realidade, era o rei não coroado dos judeus” (p. 84).
Para Anás, “nada o afetava. Nada lhe interessava, a não ser ele próprio e o poder que o dinheiro lhe proporcionava. Apenas honrava com seu ódio o que ameaçava o seu poder. E foi esse ponto de vista que prevaleceu para formar uma opinião sobre Jesus de Nazaré. Logo que O viu e ouviu, concluiu que, se O aceitasse como Messias, teria de confessar a si próprio sua condição de ladrão e opressor do povo, um hipócrita servo de Deus; teria de devolver sua riqueza roubada e seu bem-estar. Demasiado depravado para encarar tal hipótese, concebeu um ódio mortal ao Senhor ao vê-Lo transpor o Pórtico de Salomão. Anás fora sempre mau; agora era satânico” (p. 86).
É sabido que não há maior ódio que o religioso. As guerras de religião no-lo provam. Foi esse ódio que tiveram os fariseus do tempo a Nosso Senhor, a ponto de negarem seus milagres, escolherem um assassino e malfeitor em seu lugar, e mandá-Lo crucificar impiedosamente. Além do mais, a se comprazerem com seus sofrimentos.
Por isso Cristo Jesus — que é “manso e humilde de Coração”, mas também, como sua Santíssima Mãe, “terrível como um exército em ordem de batalha” — fustigou tanto esses religiosos, que deviam ser “a luz do mundo e o sal da terra”, mas infelizmente, como muitos dos seus similares hoje, trabalhavam contra a própria instituição que deveriam representar.
Tudo isso justifica a atitude enérgica da Sabedoria Encarnada com relação aos escribas, fariseus e doutores da Lei.
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[i] Editora Civilização, Porto, 2004, páginas 81 a 86.
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