Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
13 min — há 12 anos — Atualizado em: 9/1/2017, 9:28:09 PM
Em 11 de fevereiro, dia da Festa de Nossa Senhora de Lourdes, o Santo Padre Bento XVI comunicou ao Consistório de cardeais e a todo o mundo sua decisão de renunciar ao Pontificado.
O anúncio foi acolhido pelos cardeais, “quase inteiramente incrédulos”, “com a sensação de perda”, “como um raio em céu sereno”, segundo as palavras dirigidas em seguida ao Papa pelo cardeal decano Angelo Sodano.
Se tão grande foi a perda dos cardeais, pode-se imaginar quão forte tem sido nesses dias a desorientação dos fieis, sobretudo daqueles que sempre viram em Bento XVI um ponto de referência e agora se sentem de algum modo “órfãos”, senão mesmo abandonados, em face das graves dificuldades que enfrenta a Igreja no momento presente.
No entanto, a possibilidade da renúncia de um Papa ao sólio pontifício não é de todo inesperada. O presidente da Conferência Episcopal da Alemanha, Karl Lehmann, e o primaz da Bélgica, Godfried Danneels, haviam apresentado a ideia da “renúncia” de João Paulo II, quando a sua saúde havia se deteriorado.
O cardeal Ratzinger, no seu livro-entrevista Luz do Mundo, de 2010, disse ao jornalista alemão Peter Seewald que se um Papa se dá conta de que não é mais capaz, “fisicamente, psicologicamente e espiritualmente, de cumprir os deveres de seu ofício, então ele tem o direito e, em certas circunstâncias, também a obrigação, de renunciar”.
Ainda em 2010, cinquenta teólogos espanhóis haviam manifestado sua adesão à Carta Aberta do teólogo suíço Hans Küng aos bispos de todo o mundo, com estas palavras: “Acreditamos que o pontificado de Bento XVI pode ter-se exaurido. O Papa não tem a idade nem a mentalidade para responder adequadamente aos graves e urgentes problemas com os quais a Igreja Católica se defronta. Pensamos, portanto, com o devido respeito por sua pessoa, que deve apresentar sua demissão do cargo.”
E quando, entre 2011 e 2012, alguns jornalistas como Giuliano Ferrara e Antonio Socci escreveram sobre a possível renúncia do Papa, esta hipótese havia suscitado entre os leitores mais desaprovação que consenso.
Não existe dúvida sobre o direito de um Papa de renunciar. O novo Código de Direito Canônico prevê a possibilidade de renúncia do Papa no cânon 332, parágrafo segundo, com estas palavras: “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie a seu múnus, para a validade se requer que a renúncia seja livremente feita e devidamente manifestada, mas não que seja aceita por alguém.”
Nos artigos 1 º e 3 º da Constituição Apostólica Universi Dominicis Gregis, de 1996, sobre a vacância da Santa Sé, é prevista ademais a possibilidade de que a vacância da Sé Apostólica seja determinada não só pela morte do Papa, mas também por sua renúncia válida.
Na História não são muitos os episódios documentados de abdicação. O caso mais conhecido continua sendo o de São Celestino V, o monge Pietro da Morrone, que foi eleito na Perugia em 5 de julho de 1294 e coroado em L’Aquila em 29 de agosto seguinte.
Após um reinado de apenas cinco meses, ele julgou oportuno renunciar, por não se sentir à altura do cargo que assumira. Em seguida, preparou a sua abdicação, consultando primeiramente os cardeais e promulgando uma Constituição com a qual confirmava a validade das regras já estabelecidas pelo Papa Gregório X para a realização do próximo Conclave.
Em 13 de dezembro, em Nápoles, pronunciou sua abdicação diante do Colégio dos Cardeais, despojou-se da insígnia papal e das roupas, e tomou o hábito de eremita. Em 24 de dezembro de 1294, por sua vez, foi eleito Papa Benedetto Caetani com o nome de Bonifácio VIII.
Outro caso de renúncia papal – o último registrado até hoje – ocorreu no decurso do Concílio de Constança (1414-1418). Gregório XII (1406-1415), Papa legítimo, a fim de recompor o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), enviou a Constança o seu plenipotenciário Carlo Malatesta, para dar a conhecer sua intenção de retirar-se do ofício papal; as demissões foram oficialmente acolhidas pela assembleia sinodal em 4 de julho de 1415, que ao mesmo tempo depôs o antipapa Bento XIII.
Gregório XII foi reintegrado ao Sacro Colégio com o título de cardeal-bispo do Porto (diocese suburbicária de Roma) e com o primeiro posto após o Papa. Abandonando o nome e o hábito pontifício e retomando o nome de cardeal Angelo Correr, ele se retirou como legado papal nas Marche [província italiana] e morreu em Recanati em 18 de outubro 1417.
Portanto, o caso de renúncia em si não escandaliza: está contemplado no Direito Canônico e verificou-se historicamente ao longo dos séculos. Note-se, no entanto, que o Papa pode renunciar, e por vezes tem historicamente renunciado ao Pontificado, enquanto este é considerado um “cargo jurisdicional da Igreja”, não indelevelmente ligado à pessoa que o ocupa.
A hierarquia apostólica exerce de fato dois poderes misteriosamente unidos na mesma pessoa: o poder da ordem e o poder de jurisdição (ver, por exemplo, São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-IIae, q 39, a 3, resp., III, q 6-2).
Ambos poderes são direcionados a realizar os objetivos peculiares da Igreja, mas cada qual com características próprias, que o distinguem profundamente do outro: o potestas ordinis é o poder de distribuir os meios da graça divina e refere-se à administração dos sacramentos e ao exercício do culto oficial; o potestas iurisdictionis é o poder de governar a instituição eclesiástica e os simples fiéis.
O poder da ordem distingue-se do poder de jurisdição não só pela diversidade de natureza e de objeto, mas também pelo modo como o poder de ordem é conferido, uma vez que tem como propriedade ser dado com a consagração, isto é, por meio de um sacramento e com a impressão de um caráter sagrado. A posse da potestas ordinis é absolutamente indelével, porquanto seus graus não são ofícios temporários, mas imprimem caráter a quem é concedido.
De acordo com o Código de Direito Canônico, uma vez que um batizado se torna diácono, sacerdote ou bispo, é para sempre e nenhuma autoridade humana pode excluir essa condição ontológica. Pelo contrário, o poder de jurisdição não é indelével, mas temporário e revogável; suas atribuições, exercidas por pessoas físicas, cessam com o término do mandato.
Outra característica importante do poder da ordem é a não territorialidade, pois os graus da hierarquia da ordem são absolutamente independentes de qualquer circunscrição territorial, pelo menos no que respeita à validade do exercício.
As atribuições do poder de jurisdição, ao contrário, são sempre limitadas no espaço e têm no território um de seus elementos constitutivos, exceto o do Sumo Pontífice, que não está sujeito a qualquer limitação de espaço.
Na Igreja, o poder de jurisdição pertence, jure divino, ao Papa e aos Bispos. A plenitude deste poder, no entanto, reside apenas no Papa que, como fundamento, sustenta todo o edifício eclesiástico. Nele se encontra todo o poder pastoral, e na Igreja não se pode conceber outro independente.
A teologia progressista, pelo contrário, sustenta, em nome do Vaticano II, uma reforma da Igreja num sentido sacramental e carismático que opõe o poder da ordem ao poder de jurisdição, a igreja da caridade à do direito, a estrutura episcopal à monárquica.
O Papa, reduzido a primus inter pares no interior do colégio dos bispos, exerceria apenas uma função ético-profética, um primado de “honra” ou de “amor”, mas não de governo e jurisdição.
Nesta perspectiva, Hans Küng e outros invocaram a hipótese de um Pontificado “temporário”, e não vitalício, como uma forma de governo exigida pela celeridade das mudanças do mundo moderno e da novidade contínua de seus problemas. “Não podemos ter um Pontífice de 80 anos que já não está totalmente presente do ponto de vista físico e mental”, disse à emissora Südwestundfunk Küng, que vê na limitação do mandato do Papa um passo necessário para a reforma radical da Igreja.
O Papa seria reduzido a presidente de um Conselho de administração, a uma figura meramente de arbitragem, ao lado de uma estrutura eclesiástica “aberta”, qual sínodo permanente, com poder de decisão.
No entanto, caso se considere que a essência do Papado está no poder sacramental da ordem e não no poder supremo de jurisdição, o Pontífice jamais poderia renunciar; se o fizesse perderia com a renúncia apenas o exercício do poder supremo, mas não o poder em si, que é indelével como a ordenação sacramental da qual deflui.
Quem admite a hipótese da renúncia deve admitir com isso que a summa potestasdo Papa deriva da jurisdição que exerce, e não do sacramento que recebe. A teologia progressista está, portanto, em contradição consigo mesma quando procura fundamentar o Papado sobre sua natureza sacramental e depois reivindica a renúncia de um papa, a qual por sua vez só pode ser admitida se seu múnus se basear sobre o poder de jurisdição.
Pela mesma razão não pode haver, após a renúncia de Bento XVI, “dois papas”, um no cargo e outro “aposentado”, como tem sido impropriamente dito. Bento XVI voltará a ser Sua Eminência o Cardeal Ratzinger e não poderá exercer prerrogativas, como a da infalibilidade, que são intimamente ligadas ao poder de jurisdição pontifício.
O Papa, portanto, pode renunciar. Mas é oportuno que o faça? Um autor, por certo não “tradicionalista”, Enzo Bianchi, escreveu em “La Stampa” de 1º de julho de 2002:
“Segundo a grande tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, nenhum papa, nenhum patriarca, nenhum bispo deveria renunciar apenas por ter atingido o limite de idade. É verdade que há cerca de trinta anos na Igreja Católica existe uma disposição que convida os bispos a oferecer as próprias renúncias ao Papa ao atingirem 75 anos, e é verdade que todos os bispos recebem com obediência esse convite e apresentam a renúncia, como também é verdade que normalmente elas são aceitas e as renúncias acolhidas. Mas esta é uma regra e uma prática recente, fixada por Paulo VI e confirmada por João Paulo II: nada exclui que no futuro possa ser revista, depois de pesados as vantagens e os problemas que ela tem produzido nas últimas décadas de aplicação.”
A norma pela qual os bispos renunciam a diocese a partir dos 75 anos é uma fase recente na história da Igreja que parece contradizer as palavras de São Paulo, para quem o Pastor é nomeado ad convivendum et commoriendum (2 Cor 7, 3), para viver e morrer junto a seu rebanho. A vocação de um Pastor, como a de todos os batizados, vincula de fato não somente até uma certa idade e a uma boa saúde, mas até a morte.
Sob este aspecto, a renúncia de Bento XVI ao Pontificado aparece como um ato legítimo do ponto de vista teológico e canônico, mas, no plano histórico, em absoluta descontinuidade com a tradição e a prática da Igreja.
Do ponto de vista do que poderiam ser as suas consequências, trata-se de um ato não simplesmente “inovador”, mas radicalmente “revolucionário”, como o definiu Eugenio Scalfari em “La Repubblica” de 12 de fevereiro.
A imagem da instituição pontifícia, aos olhos da opinião pública de todo o mundo, fica de fato despojada de sua sacralidade para ser entregue aos critérios de julgamento da modernidade.
Não por acaso, no “Corriere della Sera” do mesmo dia, Massimo Franco fala do “sintoma extremo, final, irrevogável, da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”.
Não se pode fazer uma comparação, nem com Celestino V, que renunciou após ter sido arrancado à força de sua cela eremítica, nem com Gregório XII, quem por sua vez foi forçado a renunciar para resolver a gravíssima questão do Grande Cisma do Ocidente.
Tratava-se de casos excepcionais. Mas qual é a exceção no gesto de Bento XVI? A razão, oficial, esculpida nas suas palavras pronunciadas em 11 de fevereiro, mais do que a exceção exprime a normalidade:
“No mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande importância para a vida da fé, para governar o barco de Pedro e anunciar o Evangelho, é também necessário o vigor, seja do corpo, seja da alma, vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de modo tal, que devo reconhecer a minha incapacidade.”
Não nos defrontamos com uma deficiência grave, como foi o caso de João Paulo II no final de seu pontificado.
As faculdades intelectuais de Bento XVI estão plenamente íntegras, como ele o demonstrou numa de suas últimas e mais significativas meditações para o Seminário Romano, e sua saúde é “geralmente boa”, como afirmou o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, segundo o qual, entretanto, o Papa alertou nos últimos tempos para “o desequilíbrio entre as tarefas, entre os problemas a serem resolvidos e as forças das quais sente não dispor”.
No entanto, desde o momento da eleição, cada pontífice experimenta um compreensível sentimento de inadequação, percebendo a desproporção entre suas capacidades pessoais e o peso da tarefa para a qual ele é chamado. Quem pode afirmar-se capaz de suportar com suas próprias forças o munus de Vigário de Cristo?
Mas o Espírito Santo assiste o Papa não somente no momento da eleição, senão também até a sua morte, em cada momento, mesmo nos mais difíceis, de seu pontificado. Hoje, o Espírito Santo é frequentemente invocado de forma inadequada, como quando se pretende que Ele inspira cada ato e cada palavra de um Papa ou de um Concílio.
Nestes dias, no entanto, Ele é o grande ausente dos comentários da mídia, que avaliam o gesto de Bento XVI de acordo com um critério puramente humano, como se a Igreja fosse uma multinacional guiada em termos de pura eficiência, prescindindo de qualquer influxo sobrenatural.
Mas a questão é: em dois mil anos de história, quanto foram os Papas que reinaram com boa saúde, que não experimentaram o declínio da força nem sofreram com doenças e provas morais de todo gênero? O bem-estar físico nunca foi um critério de governo da Igreja. Sê-lo-á a partir de Bento XVI?
Um católico não pode deixar de se colocar estas perguntas, e se não o fizer elas serão colocadas pelos fatos, como no próximo conclave, quando a escolha do sucessor de Bento será inevitavelmente orientada para um cardeal jovem na plenitude de suas forças, para que possa ser considerado adequado para a grave missão que o espera.
A menos que o cerne do problema não esteja naquelas “questões de grande relevância para a vida da fé” às quais se referiu o Pontífice, e que poderiam aludir à situação de ingovernabilidade em que parece encontrar-se hoje a Igreja.
Seria pouco prudente, sob este aspecto, considerar já “fechado” o pontificado de Bento XVI, dedicando-se a balanços prematuros antes de aguardar o prazo fatal anunciado por ele: a noite de 28 de fevereiro de 2013, uma data que ficará gravada na história da Igreja.
Antes, mas também depois dessa data, Bento XVI ainda poderá ser protagonista de cenários novos e inesperados. De fato, o Papa anunciou sua demissão, mas não seu silêncio; e sua escolha restitui-lhe uma liberdade da qual talvez se sentisse privado.
O que dirá e fará Bento XVI, ou o cardeal Ratzinger, nos próximos dias, semanas e meses? E, sobretudo, quem guiará, e de que maneira, a barca de Pedro nas novas tempestades que inevitavelmente o esperam?
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Fonte: Corrispondenza Romana
(*) Prof. Roberto de Mattei (Roma, 1948). Professor de História Moderna e História do Cristianismo na Universidade Européia de Roma, onde é coordenador de mestrado de Ciências Históricas. É presidente da Fundação Cultural Lepanto e membro do Conselho de Administração do Instituto Histórico Italiano para a Idade Moderna e Contemporânea e do Conselho de Administração da Sociedade Italiana Geográfica. Foi durante vários anos vice-presidente do Conselho Nacional de Pesquisas da Itália e é autor de vários livros com repercussão internacional, entre os quais destaca-se O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita (Petrus Editora, São Paulo).
Roberto De Mattei
73 artigosEscritor italiano, autor de numerosos livros, traduzidos em diversas línguas. Em 2008, foi agraciado pelo Papa com a comenda da Ordem de São Gregório Magno, em reconhecimento pelos relevantes serviços prestados à Igreja. Professor de História Moderna e História do Cristianismo na Universidade Europeia de Roma, conferencista, escritor e jornalista, Roberto de Mattei é presidente da Fondazione Lepanto. Entre 2004-2011 foi vice-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. Autor da primeira biografia de Plinio Corrêa de Oliveira, intitulada “O Cruzado do Século XX”. É também autor do best-seller “Concílio Vaticano II, uma história nunca escrita”.
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