Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
8 min — há 13 anos — Atualizado em: 9/1/2017, 9:32:17 PM
Mais do que em outras épocas, o homem contemporâneo se sente muito atraído pela misericórdia de Deus.
A pequenez do homem e a infinitude de Deus
Será isso por causa das inúmeras guerras que marcaram o passado século e ainda marcam o presente? Ou as contínuas catástrofes naturais que vem ocorrendo? Seja como for, o certo é que umas e outras fazem o homem sentir-se pequeno diante de situações que escapam ao seu controle.
Do mesmo modo, a enorme crise moral que sacode a Humanidade, o ambiente de uma imoralidade sem precedentes, patenteiam mais ainda a fraqueza do homem e o seu desamparo sem a bondade divina. Torna-se então presente o clamor do Profeta David, chorando seu próprio pecado: “Se tiverdes em conta nossos pecados, Senhor, Senhor, quem poderá subsistir diante de vós?” (Salmo 29,3).
Por outro lado, ao considerar a infinita perfeição de Deus, é preciso ter em mente sua infinita bondade, sua misericórdia sem limite, para que tal perfeição não nos amedronte, mas, pelo contrário, nos atraia. A amorosa e confiante consideração da misericórdia divina, uma especial devoção a ela, são pois mais do que justificadas, amparando-nos e dando-nos a esperança de chegarmos a nosso destino eterno de bem-aventurança.
Misericórdia e justiça se osculam
Mas, sendo Deus infinitamente perfeito, não podemos ater-nos à consideração de apenas um seus atributos, deixando de lado os demais, igualmente infinitos. Se em Deus houvesse apenas a misericórdia sem, ao mesmo tempo, a justiça, faltaria a Ele algo essencial a todo ser racional, que é o agir com equidade. O que seria um absurdo e conduziria a uma noção deformada do Criador.
É por essa razão que o mesmo Profeta David ressalta a infinita justiça de Deus ao dizer: “O Senhor, porém, domina eternamente; num trono sólido, ele pronuncia seus julgamentos. Ele mesmo julgará o universo com justiça, com equidade pronunciará sentença sobre os povos.” (Salmo 9: 8-9). E também: “Porque o Senhor é justo, ele ama a justiça.” (Salmo 10:8).
É bem claro que entre a misericórdia e a justiça divinas não pode haver contradição, mas sim harmonia, como o mesmo Profeta salienta: “A bondade e a fidelidade outra vez se irão unir, a justiça e a paz de novo se darão as mãos.” (Salmo 84:11).
Por conseguinte, devemos amar em Deus tanto a sua misericórdia como a sua justiça, pois ambos são atributos do mesmo Deus infinito, refletem a sua sabedoria e o seu amor sem limites.
Dificuldades psicológicas
Muito da dificuldade na compreensão da harmonia que existe entre a misericórdia e a justiça divinas decorrem de um entendimento errado da misericórdia humana. Convém pois nos determos em sua análise para depois considerarmos a misericórdia divina.
Misericórdia é um sentimento de compaixão para com o sofrimento e as necessidades de um outro, acompanhado do desejo ou da disposição de ajudá-lo na medida das próprias possibilidades. Ela é, pois, mais do que um simples sentimento emotivo, que não conduz a uma ação, nem uma mera filantropia que faz da ajuda aos necessitados quase uma ação burocrática.
A misericórdia deve proceder de uma verdadeira caridade para com o próximo e estar inteiramente sujeita à guia da razão, ao julgamento da inteligência, e também respeitar os ditames da justiça. Pois, como diz Santo Agostinho, a misericórdia é um ato virtuoso, “na medida em que o movimento da alma é obediente à razão “, e “se faça misericórdia sem violar a justiça.”
Resumo da vida cristã
A misericórdia, para ser uma virtude e o ato misericordioso um ato virtuoso, devem proceder da caridade, porque é do amor a Deus que procede toda virtude sobrenatural.
A misericórdia, se bem entendida, é, no dizer de Santo Tomas, a maior das virtudes em relação ao próximo, embora a caridade, que é a sua inspiradora e nos une diretamente a Deus, seja, absolutamente falando, superior a ela. Segundo o Santo Doutor, a misericórdia é como que o resumo da vida cristã.
Harmonia entre as virtudes
As virtudes formam um todo entre si: as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) dirigem as virtudes cardeais (prudencia, justiça, fortaleza e temperança) e é esse conjunto que nos dirige a Deus e nos guia em nossas ações.
Assim, não amará realmente a justiça quem não for misericordioso, nem será pacífico aquele que não praticar também a virtude da fortaleza. Cada um pode se sobressair mais numa virtude do que em outra, mas sempre buscando praticar o conjunto delas, que é no que consiste a perfeição cristã.
Um exemplo desse amor ao conjunto das virtudes temos no santo que, de certa forma, ficou como o símbolo da misericórdia: São Vicente de Paulo (1581-1660). Ao mesmo tempo em que ele foi o modelo da abnegação heroica na caridade para com os pobres, seu zêlo pela Fé o levou a combater os erros nefastos do Jansenismo (espécie de Calvinismo infiltrado na Igreja) e do Galicanismo (semi-independência da Igreja da França em relação ao Papa). Além disso, fez intenso apostolado entre membros da aristocracia, tendo sido um dos fundadores de uma sociedade de nobres para a prática da caridade e defesa da fé, a Companhia do Santíssimo Sacramento. Fundou também a Congregação da Missão (Lazaristas) para ensinar nos seminários e fazer pregações populares.
Misericórdia e justiça
A misericórdia tempera a justiça, seja diminuindo a pena, seja tornando sua aplicação mais benévola. Mas ela não pode contrariar ou eliminar a justiça pois, como afirma Santo Tomas, “Justiça sem misericórdia é crueldade, e misericórdia sem justiça conduz à ruína”
Assim, quando se rompe o equilíbrio entre a misericórdia e a justiça, os maus ficam sem punição ou, ao contrário, são punidos com brutalidade. Tanto uma coisa como outra conduz ao caos social e também leva à confusão nas mentes, pois a ausência do castigo devido ao que infringe a lei divina e a humana enfraquece nas consciências a noção do bem e do mal, conduzindo ao relativismo moral. Por sua vez, a crueldade no punir torna a justiça odiosa.
O pecador ou o criminoso, deve ser punido em sua falta de modo adequado para que a justiça seja reparada e assim permaneça vivo na sociedade o senso da justiça. Sem ele a vida entre os homens degenera na lei do mais forte.
Pela sua falta, diz Santo Tomas, o pecador deve ser objeto não da misericórdia, mas da justiça. Mas, explica, certos aspectos involuntários não diretamente desejados por ele em sua falta ele deve ser objeto de misericórdia. Embora esta não elimine a pena devida ao mal praticado, ela a torna mais suave, seja na duração da pena, seja na forma de sua aplicação.
É claro que a misericórdia nos leva a desejar a emenda do pecador, para que ele se converta, faça penitência e se salve.
Corrigir o pecador é uma obra de misericórdia
Por isso é que, nas obras de misericórdia (pelas quais nós praticamos essa virtude), as espirituais (instruir os ignorantes, dar bom conselho, corrigir os que erram, rezar pelos mortos etc.) são tanto corporais como espirituais superiores às corporais(dar esmolas, visitar os doentes, etc), por dizerem respeito mais diretamente à salvação eterna.
Entre as obras de misericórdia espirituais, é muito importante corrigir os que erram “porque por esse meio nós removemos o mal que está em nosso irmão, ou seja, o pecado, e isso constitui um ato de caridade maior do que eliminar algum sofrimento físico ou necessidade do mesmo.”
Justiça e misericórdia em Deus
Para considerarmos a misericórdia em Deus, devemos ter presente que Ele, sendo puro espírito, sua misericórdia não procede de um sentimento de compaixão, mas sim de sua infinita bondade e sabedoria. Foi por um ato de misericórdia, de puro amor, que Deus criou todo o universo e, nele, as criaturas racionais (homens e anjos), para participarem de sua própria felicidade.
Em todas as obras de Deus aparecem a justiça e a misericórdia, porque, tudo o que Ele faz, tem como último fundamento a bondade divina, portanto na misericórdia, e tudo é feito com ordem e proporção, o que está de acordo com a justiça.
Segundo Santo Tomás, “mesmo na condenação dos réprobos vê-se a misericórdia, pois esta, embora não porque lhes tire totalmente o castigo merecido, alivia a pena, já que eles são castigados menos do que mereciam.”
Amemos Deus em toda sua perfeição
Se a misericórdia divina nos atrai sobremaneira, porque sem ela nós sabemos que nada somos nem podemos, não devemos separar esse atributo divino de sua justiça, pois ambos fazem parte de sua infinita sabedoria e amor.
A perfeição da misericórdia e da justiça divina nos são atestados sobretudo na Encarnação, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que Ele assumiu sobre si os nossos pecados, para satisfazer a justiça divina ofendida e por esse ato de misericórdia nos mereceu a salvação eterna.
Amemos a Deus em toda sua perfeição, em sua misericórdia e em sua justiça pois essa é a única maneira de compreendermos a sabedoria e a santidade divinas e, desse modo, podermos imitá-las na medida possível de nossas limitações.
Isso é importante não somente para a nossa vida espiritual, mas para que possamos fazer um julgamento equilibrado da ação de nossos semelhantes, compreendendo que a misericórdia não pode destruir a justiça, pois, convém lembrar novamente, “a misericórdia sem justiça conduz à ruína” da sociedade.
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Notas:
[1]Todas as citações da Escritura são da Biblia online Ave-Maria.
[2]Citado por Santo Tomás na Summa Theologica, I-II, q. 59, a.1 ad 3.
[3]Summa Theologica, II-II, q. 30, a. 4.
[4]Supper Matthaeum, Cap. V, l. 2.
[5]Cf. Summa Theologica, II-II, q. 30, a. 1, ad. 1.
[6]Idem, II-II, q. 33, a. 1, answer.
[7]Suma Theologica, I, q. 21, a.4 ad 1.
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