Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
7 min — há 4 anos — Atualizado em: 3/12/2021, 5:58:18 AM
O século XVI foi o Século de Ouro da Espanha. Século da Contra-Reforma Católica, com seus inúmeros e grandes santos, como Santo Inácio de Loyola e Santa Teresa d’Ávila; das grandes descobertas e da evangelização; do apogeu da literatura, da pintura, da música e de todas as artes, que fizeram da Espanha a primeira potência da época.
No campo militar, os famosos “tercios”[i] espanhóis formaram durante dois séculos a melhor infantaria do mundo. Sua superioridade, demonstrada tantas vezes no campo de batalha, se devia certamente ao valor de seus soldados, mas principalmente ao “espírito de corpo”; não só no âmbito moral, mas também no técnico, isto é, em sua visão estratégica, capacidade de inovação e adaptação, em sua portentosa logística, louvada até por seus adversários.
São inúmeras as batalhas vencidas por esse corpo de elite. Restringimo-nos apenas a uma delas, a campanha contra o herege flamengo, então Flandres,[ii] hoje Holanda, durante a qual ocorreu um episódio verdadeiramente milagroso quando as condições eram as mais adversas para os tercios.
Apostasia de uma nação
O Condado de Flandres data do século IX. Depois de várias vicissitudes ao longo da História, ele passou no século XIV para os duques de Borgonha, e em 1477, por enlaces matrimoniais, para a casa dos Habsburgos da Áustria, terminando sob a soberania de Carlos I da Espanha, ou V da Alemanha.
As coisas estavam assim quando, em meados do século XVI, a maioria dos nobres flamengos aderiu com grande parte da população ao calvinismo protestante mais radical. E em 1566 eles apresentaram à governadora dos Países Baixos, Margarida de Parma, irmã de Felipe II, uma intimação pedindo liberdade para a nova religião, o que no fundo era também o pedido da liberdade política para Flandres. Como Margarida não atendeu às duas reivindicações, no dia 15 de agosto de 1567, festa da Assunção de Nossa Senhora aos céus, os calvinistas saquearam igrejas e destruíram imagens religiosas em várias cidades dos Países Baixos.
Diante da rebelião, o rei Felipe II decidiu intervir militarmente, enviando o famoso Duque de Alba para tentar pacificar o país, e prepará-lo para uma possível viagem do próprio Felipe. Alba chamou então os tercios da Itália para ajudá-lo na empresa.
Quando parecia que o condado de Flandres estava pacificado, chegou um reforço de hereges ingleses, tornando a situação feroz para ambos os lados.
Isolados, famintos, encharcados
Era assim que se encontravamos tercios em 1585, em sua campanha de Flandres na ilha de Bommel, entre os rios Mosa e Waal, ponto chave que lhes permitiria controlar esses dois rios que os separavam dos hereges.
No comando estava Alexandre Farnese, filho de Margarida e neto do Imperador Carlos V. Esse valoroso general desempenhou um papel preponderante em várias batalhas contra os protestantes de Flandres, de tal modo que sucederia ao príncipe D. João d’Áustria no governo do país após sua morte, alcançando notável sucesso diplomático ao conseguir conservar as províncias católicas.
Farnese contava com dois de seus melhores tercios, Don Francisco Arias de Bobadilla e João de Águila.
Temeroso pela fama dos soldados espanhóis, o comandante dos hereges, Conde de Hollac, não ousava enfrentá-los corpo a corpo. Apelou então para o assédio marítimo, com barcos de pouco calado, capazes de formar um cerco através dos canais. Com isso deixava o inimigo sem abastecimento nem abrigo, e sem esperança de receber reforços.
Nessa situação, os flamengos ofereceram aos espanhóis uma capitulação honrosa: retirada sem prisioneiros e abandono do lugar, conservando suas bandeiras. A resposta foi muito espanhola e categórica: “Os infantes espanhóis preferem a morte à desonra. Já falaremos de capitulação depois de mortos”. Os protestantes sabiam que com os tercios não se brincava, pois além de conquistarem Ambères, Tornai e Maastricht, e reconquistarem Dunkerque e Nieuwpoort, haviam hasteado suas bandeiras em Bruges e Gant.
Hollac mandou então arrebentar os diques que continham os dois rios, inundando a ilha de Bommel. Só não ficou submerso um pequeno monte, no qual os espanhóis se refugiaram, acuados, cansados, famintos e molhados até os ossos. Ao mesmo tempo, a artilharia dos barcos protestantes começou a vomitar fogo.
Na noite de 7 de dezembro, antevendo um ataque dos flamengos, os homens de Bobadilha e de Águila começaram a preparar refúgios e trincheiras.
Ocorre o milagre
Foi então que ocorreu o inesperado. Ao cavar a trincheira, um dos soldados bateu com a pá de em algo estranho. Pensou que era uma pedra, mas, ao tirá-la,deparou-se com um pedaço de madeira. Recolheu-o com as mãos e foi limpando o barro. Logo emergiram de uma pintura as cores azul e branca. Estupefato, ele viu que se tratava de uma pintura da Imaculada Conceição!
Cumpre observar que, conquanto a Imaculada Conceição da Santíssima Virgem fosse defendida por santos e teólogos praticamente desde o início da Igreja, foi somente no século XIX que o Papa Pio IX a proclamou dogma de fé. Esse grande Pontífice não fez senão precisar, em termos teológicos, o que era fé constante da Igreja através dos séculos. Nos países ibéricos, a devoção a Nossa Senhora da Conceição sempre foi muito popular.
Desse modo, acontece que, juntamente com São Tiago Apóstolo, esta é uma das invocações mais frequentes das armas espanholas. Já nos idos de 1212, em Navas de Tolosa, o arcebispo de Toledo lutou contra os mouros portando um estandarte no qual estava a Virgem Imaculada. Mais tarde, em 1492, estando os Reis Católicos para dar o último assalto à praça de Granada em poder dos mouros, mandaram erigir, no meio do acampamento, um altar dedicado à Conceição de Nossa Senhora, e fez o voto de consagrar a mesquita principal da cidade à Maria sem mancha. O que realmente ocorreu.
É preciso salientar que as tropas espanholas estavam ali lutando sobretudo em defesa da fé católica contra os protestantes, e além de por seu rei. Por isso nas cidades católicas flamengas que eles estavam defendendo, os habitantes tinham saído às ruas em procissão com o Santíssimo Sacramento, para rogar pelos sitiados.
Diante de fato tão auspicioso, tanto os oficiais quanto os soldados e demais pessoas presentes naquela ilha, viram nesse encontro uma promessa da Mãe de Deus de que lhes seria propícia. O que fez com que todos juntassem logo as pedras para construir um altar para venerar a imagem encontrada, à qual saudaram cantando a Salve Regina.
Então Bobadilha, que estava no comando da tropa sitiada, disse aos seus subordinados: “Soldados! A fome e o frio nos levam à derrota. O milagroso achado vem para salvar-nos. Quereis que se queimem as bandeiras, se inutilize a artilharia, e que abordemos de noite as galeras, prometendo à Virgem ganhar ou perder tudo, todos, sem fica nenhum vivo?” Com uma só voz, todos responderam: “Sim, queremos!”
Ao milagre soma-se outro
Ocorreu então outro fato milagroso: Um vento poderoso e glacial começou a açoitar àquelas terras e àquelas águas, de modo que tudo se transformou em gelo. O que fez com que os barcos holandeses se afastassem para não ficarem bloqueados.
Foi então que os valorosos tercios, correndo sobre o rio gelado, assaltaram os fortes, que caíram um depois do outro. Repetiram a operação com relação aos barcos que não tinham podido escapar. O saldo final resultou na captura de 10 navios, de toda a artilharia e munição inimiga, além de dois mil prisioneiros! O que horas antes parecia impossível.
Mas não foram só os espanhóis que reconheceram no fato algo de milagroso. O próprio comandante holandês confessou: “Para mim tal parece que Deus é espanhol para operar tão grande milagre!”
A milagrosa imagem da Imaculada Conceição foi trasladada então para a igreja de Balduque. E depois dessa batalha, a Imaculada Conceição se converteu na patrona de todos os tercios de Flandres e da Itália. E fundaram uma confraria dos Soldados da Virgem Concebida sem Mancha, da qual o primeiro confrade foi o comandante Bobadilha.
[i] “Tercio” (terço, terceira parte), foi um “termo usado na divisão das tropas segundo sua função: “Repartiremos os peões em três partes. Uma, um terço com lanças, como os alemães as traziam, que chamaram picas…”. De maneira que o uso do termo ‘tercio’ deriva das três funções especial de cada parte do contingente…”. Esparza, p. 84.
[ii] Baseamo-nos no excelente livro do historiador José Javier Esparza, TERCIOS, Historia ilustrada de la legendaria infantería española, La Esfera de los Libros, Madri, 2017.
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