Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
12 min — há 8 anos
É doutrina corrente que Deus sempre dá às suas criaturas — inclusive às que vivem em condições muito adversas como a heresia e o paganismo — as condições necessárias para a salvação. Ele o faz por meio da lei natural, que é impressa em todos os corações. Sendo fiel a essa lei, uma alma reta pode chegar ao conhecimento de Deus.
Disso temos exemplo num caso de uma menina nascida na África de pais adoradores do sol, que desde os albores da vida se punha a questão: “Quem criou o mundo e tudo o que existe?” Por meio dessa lei que habitava no fundo do seu coração, ela praticava uma religião natural, e chegou ao conhecimento de Deus antes de chegar à luz da fé sobrenatural.
Trata-se da princesa Chikaba [acima, pintura dela como freira dominicana em Salamanca], nascida nos finais do século XVII e princípios do XVIII na Costa do Ouro, na África, e falecida como freira contemplativa na Espanha.
Antes de falarmos de sua extraordinária vida — narrada por ela a seu confessor, Pe. Juan Carlos Paniagua, que a publicou em 1752 —, vamos fazer, para proveito de nossos leitores, algumas considerações teóricas sobre essa lei inata que, independente do auxílio da religião, é de molde a reger todos os atos humanos.
Impressa na alma de todos os mortais, essa mencionada lei coincide com as normas morais que o homem pode conhecer mediante a mera luz da razão, como sejam: não matar, não roubar, não cometer adultério, honrar pai e mãe. Isso ocorre qualquer que seja o estado de vida ou meio em que vive o homem. Pois, mesmo os povos mais primitivos, obedecem a algumas noções morais básicas, como a de que é preciso fazer o bem e evitar o mal, honrar pai e mãe, cultuar a divindade.
Essas normas não foram impostas por alguém, como determinado chefe ou cacique, mas inseridas por Deus na própria natureza. Os pagãos mais civilizados da Antiguidade — os gregos e os romanos — atribuíam-nas a uma divindade.
Isso se dá mesmo com os povos pagãos mais primitivos: “O princípio fundamental da Lei natural pode ser conhecido com certeza por todo homem normal, sendo evidente por si mesmo. O mesmo se diga a respeito das conclusões imediatas. Quanto às conclusões remotas, embora sejam por si mesmas acessíveis à razão, podem não ser devidamente apreendidas por pessoas que vivam em ambientes moralmente pouco evoluídos, onde a consciência moral esteja embotada pela mediocridade e a dureza dos corações”. Pelo contrário: “Quem se aplica de coração sincero à reflexão sobre a vida moral, percebe que o preceito básico de ‘fazer o bem’ é altamente exigente, implicando em conseqüências cada vez mais delicadas e magnânimas” [i].
São Paulo afirma: “Quando os gentios, que não têm lei (escrita), fazem naturalmente as coisas que são da lei, esses, não tendo lei, a si mesmos servem de lei, e mostram que o que a lei ordena está escrito em seus corações, dando-lhes testemunho a sua própria consciência e seus próprios pensamentos, que os acusam, se fizerem o mal, ou também os defendem, se fizerem o bem. Isto ver-se-á naquele dia em que Deus, segundo o meu evangelho, há de julgar as coisas ocultas dos homens por meio de Jesus Cristo” (Rm 2, 14-16).
[ii]
“Costa do Ouro” [ao lado, mapa histórico da Costa da Guine chamada Costa de Ouro] foi o nome dado pelos colonizadores portugueses à costa oeste do Golfo da Guiné, região que atualmente pertence a Gana. Colonizada primeiro pelos portugueses em 1482, foi conquistada pelos holandeses em 1598 e depois pelos ingleses em 1871. Tomou o nome de Gana em 1957, sendo das primeiras colônias africanas a alcançar a independência[iii].
Como dissemos, a pequena Chikaba é um exemplo admirável e patente de como uma alma fiel à Lei natural impressa em seu coração pode chegar ao conhecimento de Deus.
Nascida em 1676 no pequeno reino da Costa do Ouro, ela era a caçula e a mais inteligente dos quatro filhos dos soberanos da Mina Baixa de Ouro, pelo que todos julgavam que sucederia ao pai no governo do país.
O Evangelho não havia ainda penetrado naquela região e, no entanto, desde o uso da razão a princesa Chikaba deu mostras de uma religiosidade natural fora do comum. Vendo os campos, as flores, os pássaros, ela se perguntava, como fazia Santo Tomás de Aquino aos cinco anos de idade, abismado diante da grandeza da Criação: “Quem rega a terra, mantém a erva fresca, e dá colorido às flores?”.
Certo dia um de seus irmãos levou-a a um rito do culto ao sol, adorado por sua tribo. Mostrando-lhe o astro-rei em todo o seu esplendor matutino, disse-lhe: “Vês ali o deus por quem perguntas, e a quem toda terra reverencia?”. Não convencida, a menina respondeu sagazmente: “Mas, quem pôs ali essa estrela? Como é pequena para ser autora de tanta grandeza!”.
Deslumbrados por sua prematura sabedoria, os súditos de seu pai começaram a considerá-la uma espécie de oráculo divino, e a consultá-la em suas dúvidas. Contudo, Chikaba fugia para a solidão, a fim de meditar em todas essas coisas e, de certo modo, prestar ao seu modo um culto ao verdadeiro Deus, que ainda não conhecia.
Aos nove anos, chegando junto a uma fonte natural, Chikaba se perguntou: “Quem a pôs aí?”. Ao levantar os olhos, viu diante de si uma Senhora branca e formosa, que levava nos braços um Menino branco. Este sujeitava numa das mãos uma longa fita, e acariciava a cabeça da menina com a outra. Essa visão a marcou para sempre.
Certo dia, quando seu irmão mais velho lhe expressou o temor de que seria ela, e não ele, a suceder ao pai, ela o tranquilizou dizendo: “Sabes que eu não hei de casar nesta Terra com homem algum, mas com um Menino muito branco que conheço?”. Ela já estava enamorada do Menino Deus.
Foi então que a vida de Chikaba teve uma reviravolta trágica, embora providencial. Concentrada em suas elucubrações, ela se afastou um dia até uma praia desconhecida. Nesse momento aportava uma barca proveniente de um navio espanhol. Um dos seus ocupantes, vendo a menina, capturou-a para levá-la como escrava.
Ao ver afastar a praia, Chikaba compreendeu que a levavam para sempre ao desconhecido. Quis então atirar-se às águas, mas nesse momento apareceu-lhe novamente a bela Senhora branca, que a dissuadiu do que poderia ter resultado em sua morte.
Os tripulantes do navio, vendo suas jóias e o modo como Chikaba estava vestida, compreenderam que devia ser alguém de certa relevância entre os seus. E começaram a tratá-la com mais consideração.
Foi provavelmente algum sacerdote presente no navio que, vendo a viva inteligência da menina, começou a instruí-la nas verdades da fé. Chikaba assimilava sofregamente tudo isso, que vinha de encontro aos seus mais caros anseios. De tal modo que, atracando o barco em São Tomé para reabastecimento, ela foi ali batizada com o nome de Teresa. Tinha então dez anos de idade.
Teresa Chikaba explicou depois ao seu confessor a felicidade que representou para ela encontrar por fim resposta a todas suas inquietudes religiosas. E que isso mitigou muito a dor que sentia ao ver-se separada para sempre de seus entes queridos.
Chegando à Espanha, seus captores julgaram que aquela escrava, por sua origem e sua personalidade, merecia viver na corte real de Madri. Consequentemente, ofereceram-na ao rei Carlos II, que a entregou ao Marquês de Mancera [pintura ao lado] para que cuidasse de sua educação religiosa e cívica.
Bem orientada por um diretor espiritual, a adolescente progrediu tanto na virtude que passou a ser confidente da marquesa. Esta, abandonando as diversões e os entretenimentos, começou a passar com a escrava muitas horas diante do Santíssimo Sacramento.
Ora, essa preferência por Chikaba provocou a inveja dos outros servidores, que começaram a insultá-la e molestá-la, especialmente uma escrava turca, que tentou mesmo assassiná-la. Atacada por mortal moléstia, a muçulmana se negava a converter-se. Chikaba, com muita caridade e tato, conseguiu convencê-la a receber o batismo, após o qual a turca morreu piedosamente.
Alguns anos depois, apareceu na corte de Carlos II um negro, também de origem nobre, chamado João Francisco. Este havia sido capturado em seu país por franceses, e dado a Luís XIV. Quando o Rei-Sol lhe deu a liberdade, João Francisco foi para a Espanha.
Lá sabendo que uma jovem negra estava com os marqueses de Mancera, quis conhecê-la, vindo a descobrir que era sua sobrinha.
Teresa teve assim notícias de seus pais e irmãos, alguns deles já falecidos. E ficou alegremente surpresa ao saber que todos eles tinham se tornados cristãos.
João Francisco quis casar-se com ela, para voltarem juntos à sua pátria. Mas Chikaba recusou-se de modo peremptório, pois estava resolvida a entregar-se inteiramente àquele Menino branco, que já sabia que era o próprio Menino Jesus. O tio usou de violência e quis levá-la à força, mas com a intervenção dos marqueses sua tentativa fracassou.
Vendo a firme resolução da jovem de entrar num convento, os marqueses encarregaram o nobre cavaleiro Dom Diego Gamarra de procurar um em Madri ou nos arredores, que quisesse recebê-la. Apesar das altas recomendações, todos os conventos se negavam a recebê-la.
Isso constituiu um profundo sofrimento para a jovem. Segundo dizem as Atas do Capítulo Provincial dos Dominicanos, reunidos em Toro em 1749, São Domingos então “a consolou, assegurando-lhe que se cumpririam seus desejos”.
Finalmente, Dom Diego procurou a priora do Convento da Penitência de São Domingos, em Salamanca, que concordou em receber a postulante. Isso ocorreu no ano de 1703.
Outra cruz estava reservada a Teresa: o bispo local, Dom Francisco Calderón de la Barca, parente do dramaturgo, proibiu que ela ingressasse como monja de coro, só a recebendo como irmã leiga e servente. Isso significava que ela não podia compartilhar a vida das outras monjas, nem, sobretudo, rezar com elas o Ofício Divino. Com espírito de obediência, ela aceitou essa humilhação.
Aos poucos as irmãs foram se edificando com a bondade de coração, piedade e caridade da jovem postulante, mesmo para com aquelas que a tratavam mal por causa de sua cor.
Ocorreu então a uma das freiras, Irmã Maria Teresa de São Jacinto, ensinar-lhe a rezar o Ofício Divino segundo o rito dominicano, e outras orações próprias à Ordem. Isso foi providencial, pois o bispo, reconhecendo a santidade daquela irmã leiga, não só permitiu que fosse recebida no Noviciado, mas adiantou sua profissão religiosa.
Desse modo, no dia 29 de junho de 1704, Chikaba, aos 28 anos de idade, converteu-se em Irmã Teresa Juliana de São Domingos. Para reparar sua falta anterior, o próprio bispo quis presidir à profissão solene [ao lado, o documento da profissão solene de fé da Irmã Teresa Chikaba em 1704].
Nesse dia a nova monja teve uma visão de São Domingos, que recebeu seus votos. Como ela confessou mais tarde, essa foi uma das três ou quatro vezes que o santo fundador lhe apareceu.
Aos poucos, a virtude dessa santa negra começou a ser conhecida fora do convento, por suas penitências e seus jejuns. E assim começaram as visitas ao parlatório, para ter o privilégio de pedir-lhe conselhos e recomendar-se às suas orações. Teresa passou a ser conhecida carinhosamente em Salamanca como “A Negrinha”, ou “La negrita de la penitencia”.
O povo atribuía-lhe não só diversas curas, mas também o fato de a cidade de Salamanca ter-se visto livre dos bombardeios e saques durante a guerra com Portugal, em 1706. Nessa ocasião, diante da proximidade dos bombardeios, Teresa havia posto numa das janelas do convento uma imagem de São Vicente Ferrer como escudo protetor. E recomendou aos habitantes da cidade que rezassem a ele pedindo proteção.
A irmã Teresa Chikaba morreu em odor de santidade no dia 6 de dezembro de 1748, segundo ainda o Capítulo de Toro, “tendo vivido setenta e dois anos sem mancha de pecado mortal”. Seu biógrafo relata um prodígio que sucedeu nesse momento, e que assombrou o doutor que a atendia: uma breve transfiguração converteu em luminosamente branco seu rosto negro.
Os restos mortais da irmã Teresa foram depositados no convento Santa Maria de las Duenas, em Salamanca e, em 1961, foram guardados num sepulcro, aberto no claustro daquele histórico monastério, com uma lápide de mármore negro [foto acima e detalhe ao lado].
Apesar de que em seu tempo ninguém duvidasse de sua santidade, já transcorreram mais de 250 anos desde a morte de Teresa Chikaba sem que a Igreja se tenha ainda pronunciado por meio de sua beatificação e canonização. O que fazemos votos para que ocorra o quanto antes, para sua glorificação, de sua raça, de sua terra natal, e de toda a Igreja.
[ii] Utilizamos para este artigo a matéria publicada em http://www.religionenlibertad.com/teresa-chikaba-la-negrita-de-la-penitencia-de-princesa-a-esclava-37378.htm
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