Cruzada de orações pela Igreja no próximo Sinodo
13 min — há 4 anos — Atualizado em: 3/9/2021, 5:25:23 AM
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 836, Agosto/2020.
Hoje, mais do que nunca, fala-se exaustivamente de economia; o que deixa muitos preocupados, não só com a gravidade da situação econômica como ela se apresenta, mas também com as concepções marxistas de economia. Mas para a família católica, qual a importância que se deve atribuir às questões econômicas? O que ensina a doutrina social da Igreja sobre o assunto? Estas e outras perguntas são respondidas cabalmente nesta entrevista com Ettore Gotti Tedeschi [foto acima], concedida com exclusividade ao colaborador de Catolicismo na Itália, Sr. Julio Loredo de Izcue.
Para o nosso entrevistado, que é banqueiro, economista, professor universitário, escritor, ex-presidente do IOR (Banco do Vaticano), menosprezar o papel da família produz crises socioeconômicas e culturais; e “o estopim do colapso econômico foi o colapso dos nascimentos, devido às teorias ambientais malthusianas”, pois teve como consequência o envelhecimento da população.
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Enquanto católico apostólico romano, e como homem público, qual o seu enfoque sobre a economia?
Hoje a economia parece ter-se tornado uma ferramenta utilizada para “assustar” e “deformar a visão moral”, por isso tomo o máximo cuidado ao tratar da questão. Veja bem, toda decisão econômica produz consequências morais, e toda visão moral influencia a utilização de instrumentos econômicos. Mas a economia não é uma ciência. Simplificando, a “maçã” da economia não é a “maçã de Newton”.
Uma decisão econômica raramente produz o efeito desejado. Se a economia é submetida a projetos “políticos” (para “assustar”), pode ser tentada a inventar utopias (pense no marxismo). Mas se essas utopias forem incorporadas ao Magistério da Igreja, elas correm o risco de produzir heresias (pense na pseudo-teologia da libertação), e mesmo uma heresia pode influenciar o comportamento econômico (pense no luteranismo).
A moral e a economia estão muito conectadas, por isso a Igreja interveio, a partir de Leão XIII, ao propor a sua própria Doutrina Social. Hoje, como se considera que a Igreja não deve mais se dedicar ao magistério e à evangelização, a antiga Doutrina Social Católica se tornou inaplicável; mas uma nova parece estar em gestação, podendo advir do evento de Assis (Economia de Francisco).
Conforme acabei de dizer, a economia também pode se tornar uma ferramenta aplicável para deformar a visão moral. Num recente documento pontifício (Evangelii Gaudium), lemos que existe uma economia que mata; e o pior dos males sociais é a desigualdade — isto é, a má alocação de recursos econômicos — e não o pecado. Porém, como explicam com absoluta clareza João Paulo II na Sollecitudo Rei Socialis, e Bento XVI na Caritas in Veritate, quem usa bem ou mal o instrumento econômico é o homem, portanto é o homem que deve ser treinado, deve ser convertido. Não é a ferramenta que precisa ser alterada, embora alguma alteração seja lícita.
Lendo essas considerações, fiquei preocupado. E a preocupação aumentou quando notei no atual pontificado a ênfase colocada nas questões econômicas. Até ontem a Igreja não tinha que lidar com a economia, na melhor das hipóteses lidava apenas com as consciências individuais. Hoje se diria que ela deve e quer lidar tão-só com a economia, e apenas secundariamente com as consciências. Mas parece lidar com problemas econômicos — tais como pobreza, capitalismo, finanças, desigualdades, redistribuição de riqueza, migração, meio ambiente etc. — sem demonstrar conhecer as causas, mas apenas os efeitos. A suspeita, portanto, é que alguém possa inclusive pensar em utilizar a ferramenta econômica para outros fins até agora inimagináveis, talvez para reinterpretar o próprio Gênesis.
Quais são suas previsões sobre as propostas que poderão surgir em 21 de novembro próximo em Assis, por ocasião da Conferência sobre Economia convocada pelo Papa Francisco?
Lendo os textos dos organizadores e dos principais convidados, posso imaginar, mais do que fazer previsões, que essa conferência tentaria estabelecer regras de uma nova doutrina social da Igreja. Posso igualmente imaginar que, na visão dos organizadores, uma nova doutrina social cristã se torne necessária, pois o Gênesis até hoje teria sido mal interpretado, portanto mal utilizado.
A famosa compreensão da “realidade”, muito realçada neste pontificado, explicaria que o homem não é uma prioridade na criação; pois, tendo abusado dela, desequilibrou a ordem da criação. O resultado seria a necessidade de reduzir o seu próprio papel na criação, levando-o talvez a se identificar novamente com a natureza, como os povos primitivos e pagãos (pense no Sínodo da Amazônia).
Ainda não entendi bem se isso foi uma preliminar, pela necessidade de convencer todos os homens a reconhecer no ambientalismo uma religião universal para a humanidade, de acordo com a nova gênese reconstruída. Pode-se deduzir que o novo bem comum esteja centrado na conservação do meio ambiente, e não no homem ganancioso e egoísta.
Em Assis pode-se tentar explicar como fazê-lo, propondo mudanças nas estruturas e ferramentas socioeconômicas do sistema capitalista. Tais mudanças poderiam agradar muito ao homem, no entanto prejudicariam a criação, por se oporem ao surgimento de desigualdades baseadas em modelos meritocráticos.
Também poderia ser possível propor em Assis uma “reumanização” da economia, mudando a “velha e errada ordem natural” por meio da proposta de um novo humanismo ambiental. O significado da vida humana poderia não ser apenas a sua salvação eterna, mas antes a salvação da natureza. Veremos.
Qual é o papel da família para a economia?
A família mereceria o prêmio Nobel de Economia. E a Igreja Católica mereceria também esse prêmio, pelo valor que atribui a esse núcleo social indispensável. O valor econômico da família decorre do estímulo, empenho e ações responsáveis, visando apoiar e organizar seu próprio desenvolvimento. Numa sociedade em que a família não é valorizada, os danos econômicos são enormes.
Numa família se originam projetos que exigem maiores compromissos na geração de riqueza, poupança, investimento. No seio da família surgem estímulos competidores saudáveis, sobretudo graças à educação e treinamento subjetivos de cada membro, que em perspectiva se torna motor da produção de riqueza que beneficia toda a sociedade. Além disso ela absorve os problemas sociais e econômicos de seus membros, sem transferi-los ao Estado; tende a ajudar e proteger seus membros mais fracos e vulneráveis, que de outra forma sempre pesariam para a sociedade.
A família assume três áreas de valor social, criando as condições para o crescimento do PIB, formando e educando, limitando os custos do Estado assistencial. Portanto a família é fonte de investimento em capital humano, fonte de maior comprometimento produtivo, de autoprodução e redistribuição de renda dentro dela. Por isso ela é o primeiro posto de criação de riqueza da sociedade.
Ignorar ou mesmo degradar este papel, ao invés de incentivá-lo, é uma das primeiras causas do declínio socioeconômico e cultural da sociedade. Se um país não acreditar na família, verá ruir o crescimento da riqueza produzida e do seu bem-estar econômico e social.
Se a família estivesse listada na bolsa de valores, seria o melhor investimento para se criar riqueza sustentável. Pelo contrário, ela não é amada pelo fato de competir na educação com o Estado, além de ser considerada uma “invenção” da religião católica. Só por isso a religião católica e seus valores naturais e sobrenaturais já deveriam ser estudados com mais profundidade.
Antes da pandemia do coronavírus, a Europa e todo o Ocidente chegarem a uma situação econômica insustentável. Como foi isso possível?
Isso se tornou possível fazendo com que a Europa e todo o Ocidente negassem as leis naturais inerentes às suas raízes cristãs, negassem o princípio de proteção à vida humana. Historicamente isto aconteceu no final da década de 1960, pela confluência de três acontecimentos que nunca serão suficientemente explicados e compreendidos: a conclusão do Concílio Vaticano II; a revolução da Sorbonne em maio de 1968; e o nascimento da Nova Ordem Mundial (pense em globalização).
O fato econômico mais contundente, que acendeu o estopim do colapso econômico, foi o colapso dos nascimentos, devido à aplicação das teorias ambientais malthusianas. Em razão do colapso dos nascimentos no Ocidente, a taxa de crescimento do PIB desacelerou. No entanto, como pode o PIB crescer, se a população diminui? Para sustentar o PIB, inventou-se o consumismo; ou seja, compensa-se o crescimento natural mínimo equilibrado (pelo menos a taxa de reposição) com um crescimento artificial do consumo per capita.
Em primeiro lugar, a expansão do consumismo sacrificou a poupança, para transformá-la em consumo, reduzindo a matéria-prima da intermediação de crédito para os bancos, com efeitos imagináveis. O crescimento do consumismo exigiu um aumento no poder de compra, o que foi alcançado graças à realocação da produção em países com custos trabalhistas muito baixos. Como consequência, houve uma rápida desindustrialização do Ocidente e uma industrialização acelerada e desequilibrada do Oriente. É curioso notar que esse hiperconsumo no Ocidente, ao lado de hiperindustrialismo de baixo custo no Oriente, é o que gera o fenômeno ambiental de emissões excessivas de CO2…
Chama a atenção igualmente que alguns “sábios” da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano sejam os mesmos ambientalistas neo-malthusianos que deram origem ao fenômeno. Mais tarde, ao dar-se conta de que a queda de nascimentos gerava o fenômeno irreversível de envelhecimento da população — com seus fenômenos induzidos, como o aumento exponencial dos custos da velhice, aposentadorias, saúde —, percebeu-se que o crescimento artificial do consumidor só podia ser sustentado contraindo dívidas. E o endividamento atingiu níveis insustentáveis, até que em 2007, com a quebra dos bancos, nasceu a crise em curso, ainda não resolvida até o momento dessa pandemia de covid.
Mas um segundo fenômeno, ao qual me referi acima, vem criando condições para transformar ainda mais o Ocidente. Consiste ele na modificação substancial dos fundamentos éticos na utilização da economia. Até alguns anos atrás, tais fundamentos viam na economia um instrumento a serviço do bem-estar da criatura. Os novos fundamentos éticos poderiam correr o risco de transferir a centralidade para a criação e ver sua nocividade na criatura, que será contida para salvar a natureza.
Antes a economia devia servir ao homem, hoje teria de servir à natureza para protegê-la contra o homem. A criatura-ambiente poderia substituir o homem-criatura, e a natureza deve ser aprimorada em si mesma, deixando de ser um instrumento para o homem. Assim, pode-se especular uma vez mais que a economia esteja sendo utilizada para mudar o Gênesis.
O senhor se define como um economista que faz filosofia nas horas vagas? Ou seria um filósofo que trabalha no campo econômico?
Há tempos tive uma reunião privada com o então Cardeal Ratzinger, que se tornou o Papa Bento XVI. Na ocasião ele me perguntou para que serve a economia. Foi-me fácil responder que servia para satisfazer as necessidades humanas. Mas ele pediu-me que especificasse tais necessidades e quem decide sobre elas.
Fui então forçado a refletir e intuir que a necessidade do homem, além de material, é também intelectual e espiritual. É claro que a economia deve se limitar à primeira, mas deve permitir satisfazer a segunda e a terceira. Tive a intuição de que, portanto, o verdadeiro economista é quem, acima de tudo, conhece o homem. Mas nesta Terra, e neste momento, quem conhece o homem e suas necessidades melhor que um santo?
Graças a essa reflexão, comecei a me perguntar como o economista poderia se dar bem, se antes não entendesse quais são as reais necessidades do homem para se satisfazer. Nesse ponto, fui forçado a me “converter” um pouco em filósofo, perguntando-me qual é o homem que pretendemos satisfazer materialmente.
Filosofar torna-se também uma forte tentação. Para mim, foi sem dúvida uma forte tentação eu poder contradizer o cogito ergo sum (penso, logo existo) de Descartes, e também compreender o pensamento filosófico subjacente na teologia de Karl Rahner. Gostaria de lembrar que, depois da referida reunião, o Papa Bento XVI me chamou em 2007 para trabalhar na parte econômica da Caritas in Veritate; posteriormente me encarregou de sanear as contas do Estado do Vaticano; e por fim, em 2009, indicou-me para Presidente do IOR (Banco do Vaticano).
Tendo a revista Catolicismo sido fundada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, nossos leitores gostariam de saber como o senhor conheceu esse intelectual e líder católico brasileiro. Que impressões lhe causaram tal encontro?
Conheci o Prof. Plinio em São Paulo, em 1973. O motivo dessa primeira visita foi entregar-lhe uma carta confidencial que Giovanni Cantoni me havia confiado. Até o meu retorno à Itália, em março de 74, eu o encontrei em outras ocasiões, e ele me presenteou com o livro Reforma Agrária – Questão de Consciência.
Um encontro com o Prof. Plinio muda a vida de uma pessoa; e de tal maneira que, em um livreto que escrevi no ano passado — Colloqui massimi —, dediquei uma entrevista imaginária ao Prof. Plinio; e a encerrei com uma pergunta provocativa. O penúltimo parágrafo da “conclusão” de seu livro Revolução e Contra-Revolução se inicia com o conhecido dístico Ubi Ecclesia ibi Christus, ubi Petrus ibi Ecclesia. E a minha pergunta era se ainda hoje ele o transcreveria.
O senhor tem manifestado publicamente devoção à Santa Casa de Loreto, e sustenta que a sua trasladação foi milagrosa. Estamos também no ano do Jubileu Lauretano, e seria oportuno ouvir a sua opinião a respeito, como também sobre as atitudes de autoridades eclesiásticas na Itália sobre essa devoção.
Apresentei em duas ocasiões o livro de Federico Catani [No Brasil: O milagre da Santa Casa de Loreto – Editora Ambientes e Costumes], e escrevi vários artigos sobre o assunto, especialmente depois que o Papa declarou no Avvenire (18 de setembro de 2019) que a Casa de Loreto possui “um tesouro precioso: algumas pedras da casa da família de Nazaré”, simplificação que permite implicitamente negar a trasladação milagrosa.
A Igreja parece intimidada pela ciência e pela recusa do mundo moderno aos milagres. Receio que esteja em jogo não a trasladação milagrosa, que qualquer incrédulo insistiria em negar, ainda que tivesse sido fotografada ou filmada. O que está em jogo é a negação do milagre, pois contradiz a ciência. Parece que hoje a Igreja, para conseguir que se acredite no Credo, quer tentar fazê-lo cientificamente. Isso, no entanto, significa admitir que só a ciência é portadora da verdade, e qualquer manifestação deve ser explicada cientificamente, caso contrário seria superstição.
Na ansiedade de conciliar a todo custo a fé com a ciência, para que se possa acreditar em um mistério, os teólogos de hoje não querem parecer rígidos como nos tempos de Galileu. Decidiram então ser cientistas em questões de fé. Mesmo negando as evidências mais científicas da Trasladação milagrosa da Santa Casa, transformam aquele milagre medieval num serviço de transportadora de mudanças.
O senhor poderia transmitir aos nossos leitores algo sobre suas experiências no alto cargo que ocupou no chamado Banco do Vaticano?
Apenas uma consideração. Em certas circunstâncias “misteriosas”, na Igreja pode ser mais fácil e mais remunerador fazer o mal do que o bem…
Revista Catolicismo
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