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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Parafuso anti-solilóquio


Meu primeiro contato com a novidade foi numa fila de caixa bancário – longa, estacionária e contrariadamente silenciosa, ou silenciosamente contrariada. Até que alguém atrás de mim começou a falar sozinho. Naquela época, falar sozinho indicava sempre uma pessoa que tem um parafuso a menos, ficou gagá, pirou, fugiu do hospício, ficou louco de pedra, lunático, etc. Naquela situação, portanto, a sabedoria popular me aconselhava a precaver-me. Aos poucos consegui virar-me para trás discretamente, até ver de esguelha o personagem, cujo solilóquio caminhava mais ou menos assim:

— A fila está grande, acho que vai demorar uns 20 minutos … Não, eu daqui vou para o escritório … Se você sair agora, vai chegar a tempo …

Eram frases razoavelmente sensatas, o que me tranquilizou um pouco. Prestando mais atenção, notei um fio saindo da orelha dele e prosseguindo até o bolso do paletó (ainda se usava paletó naquela época distante). Daí concluí que havia lá dentro um aparelho captando o som de longe e transmitindo-o para o ouvido do soliloquente, e vice-versa. Nem preciso dizer-lhe agora que se tratava de um primitivo celular.

Nesta nossa época em que as atitudes mais disparatadas, absurdas e repelentes tornaram-se habituais, quase nada mais é o que parece (não estou me referindo a máquinas), e falar sozinho nem sempre indica um pirado. Mas naquela época uma pessoa precavida exigia explicação lógica para qualquer coisa estranha que aparecesse. Embora esteja no mais generalizado desuso, o costume de examinar tudo de acordo com a lógica ainda me acompanha. Quando ouço alguém “falando sozinho”, ainda tenho sustos como aquele. Já nem me viro para conferir, pois quase todo mundo soliloquiza o tempo todo. Mas continuo vendo relações disso com estar pirado.

Estou fazendo um esforço hercúleo para não afirmar que você também fala sozinho, e acho até necessário explicar-me, pois pretendo hoje esbordoar o celular e seus respectivos usuários. Não o faço levianamente, sem motivo, pois um dos mais graves resultados do uso de celular e seus correlatos é que prometeram facilitar a comunicação com “um milhão de amigos”, mas estão eliminando a comunicação com os amigos. Os solilóquios se generalizaram, e mesmo entre amigos sempre há alguns que desligam e entram em órbita lunar (tornam-se lunáticos) ou se deixam comandar pela nuvem (tornam-se nefelibatas). Conversam então com desconhecidos “amigos” virtuais a grande distância. Sintoma evidente da falta de um ou mais parafusos.

Como eu nunca usei e nunca vou usar celular nem qualquer dos seus correlatos, sejam eles smart (inteligentes – eles, não os usuários) ou burros (vice-versa), nunca percebi o prazer que possa existir em tratar como amigo um ente imaginário. Muito menos em trocar amigos presentes por esses ilustres desconhecidos ausentes. Minha prevenção contra esses brinquedinhos magnificamente prejudiciais e brilhantemente dispensáveis vem de longe, desde que foram lançados.

(Esse sujeito é maluco. Julga dispensável o celular!…)

Isso mesmo! Dispensável, tanto que nunca me fez falta. Nunca precisei de celular ou seus correlatos para fazer o que desejava. E já colecionei centenas de motivos para concluir que esses brinquedinhos são prejudiciais. Não adianta eles se enfeitarem com cores, formas e recursos novos, pois minha decisão de excluí-los é definitiva. Nem como enfeite me interessam também os avançados “vestíveis”, feitos para pendurar em alguma parte do corpo e fazer o mesmo que se faz usando o conteúdo de uma bola supostamente inteligente que existe sobre o pescoço.

Sobre o pescoço – eis aí uma alusão que logo estará ultrapassada, pois está se generalizando mais uma consequência do uso desses brinquedinhos de comunicação. Os aficionados, na maioria jovens, estão ficando corcundas (não é erro de digitação). E a causa evidente é a posição inclinada da cabeça enquanto cutucam ou acariciam esses objetos, nas suas prolongadas fugas da realidade. Ficam corcundas, pois a cabeça deveria estar sobre o pescoço, mas eles a deixam pendurada no pescoço.

Deve faltar pelo menos um parafuso na cabeça desse pessoal que fala sozinho. Estou até pensando em lançar no mercado um tipo de parafuso especial, capaz de sanar essa deficiência; e terá também a função de fixar a cabeça na posição correta, fazendo dele um parafuso descorcovante, além de anti-solilóquio. Não sei por quê, mas o meu parafuso deve ter alguma semelhança com flechas.

Pelo que dizem psicólogos e ortopedistas na imprensa, o número de corcundas soliloquentes já é grande, e está em crescimento vertiginoso. Isto significa que o mercado para o meu parafuso é muito promissor.

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Jacinto Flecha

Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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