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Plinio Corrêa de Oliveira
IPCO em Ação

Soneto sem canicídio


cachorrocarrinho

Andava eu na calçada distraído
Pensando neste mundo amalucado
E do carrinho de bebê ao lado
Altissonante assusta-me um latido.

Não estranhe, caro leitor, este quarteto de decassílabos iniciar uma crônica habitualmente redigida em prosa. Acontece que o meu susto foi realmente grande. Imagine-se na minha situação, e concordará que era assustador. De repente, num carrinho onde se esperaria ouvir um balbucio ou choro de criança, me sai uma saudação canina. Surpresa inesperada, tão inesperada e surpreendente, que até justifica a redundância. Fiquei desnorteado, a ponto de não saber se pensaria em prosa, em verso ou o inverso. Custei a aterrissar das minhas altas cogitações, e procurei entender o que acontecia. Aventei algumas tentativas de explicação, mas tudo tão surrealista quanto um carrinho falante; ou rosnante. Eis um exemplo do que pensei:

Bebê já poliglota e atrevido
Lançando em língua rude um desagrado?
Mas logo vi lá dentro aboletado
Um totó de madame bem nutrido.

Por dever de ofício, tentei esclarecer se seria um bebê com cara e voz de cachorro, e até comparei a cara dele com a da madame. Havia claras semelhanças, sem dúvida, mas não a ponto de pendurar os dois na mesma árvore genealógica. Como explicar a atitude inconcebível dessa madame, colocando um cachorro no veículo que se destina ao filho? Ou se não tem filho, por que comprou o carrinho? Se o comprou, não deve faltar-lhe dinheiro para as despesas de filhos, ainda mais que esbanja dinheiro com totó dispendioso. Seria uma dessas muitas que prodigalizam cuidados maternos a cachorros, embora aleguem insuficiência de fundos para gerar os filhos e aplicar-lhes tais cuidados? Se os gerassem, seriam bem-vindos também os cachorros, pois as crianças gostam muito deles. Minha perplexidade deve ter-me deixado com ar apalermado, pois notei que a madame esboçava uma tentativa de aproximação.

Madame, com sorriso aliciante
Buscando aprovação pro animal
Olhou-me indagativa, interrogante.

Não, prezado leitor, não dava para aprovar aquele disparate humano-canino. Insensatez, disparate, demência, são termos muito fracos, insuficientes para qualificar o absurdo que havia na atitude da madame e no conjunto da cena. Pensei até em cometer um canicídio, mas uma das consequências desagradáveis seria obrigar-me a um madamicídio defensivo. Ainda bem que minhas flechas tinham ficado em casa, pois eu nem precisaria do arco para perfurar os dois no ponto certo e merecido. Porém eu não devia deixar passar isso em brancas nuvens, sem manifestar minha total desaprovação e o meu protesto. Além disso, como cidadão educado e cortês, não conseguiria deixar de retribuir a saudação canina. Tudo isso levou-me a cometer um soneto, em vez de cometer o duplo canicídio, e concluí o terceto que faltava:

Fiz-lhe uma cara atroz de irracional,
De assassino cruel, apavorante.
E o berro foi leonino, federal: A-A-A-A-A-U!!!

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Jacinto Flecha

Jacinto Flecha

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Jacinto Flecha, médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.

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